Estou dando uma parada na série de posts sobre como resolver os problemas na educação do Brasil para tratar de um tema polêmico e interessante, que é a recente proposta de liberação de planos com franquia de uso de internet.  O meu objetivo nesse post é responder a uma pergunta simples: faz sentido restringir a internet ilimitada no Brasil, como pretendem as empresas e a Anatel? A resposta, como quase tudo em economia, é: depende. Economistas não são a priori contra esse limite e, provavelmente, a existência de limites de franquia levaria um mercado eficiente (se não existissem barreiras à entrada) a uma situação de maior bem estar social. Contudo, já que esse post não é novela e o leitor não precisa esperar até o final pela resposta: com o modelo vigente de concorrência não faz sentido essa restrição.  O recente debate sobre o limite das conexões de Internet no Brasil traz à tona uma das áreas mais desenvolvidas de economia industrial, que é a economia da regulação. Jean Tirole ganhou recentemente o prêmio Nobel em Economia[1] por seus trabalhos nessa área e o papel de um regulador de mercado hoje é bem entendido. Em relação ao caso da regulação da internet no Brasil, primeiro um pouco de fundamentos de economia.

O papel do regulador.

O papel de qualquer regulador de mercado não é proteger os consumidores, e sim maximizar o bem-estar social. De forma geral, maximizar o bem-estar social significa promover a competição se não houver monopólios naturais, e garantir que a formação de oligopólios e monopólios seja conseguida somente via estratégias normais de mercado, pois nesse caso a duração dessas estruturas imperfeitas de competição seria temporária. No caso de um monopólio natural, o papel do regulador é equilibrar inovação e investimentos com as necessidades dos consumidores, garantindo um equilíbrio entre o excedente do produtor e do consumidor, de forma a maximizar uma função de bem estar social (recomendo para quem quiser entender melhor isso o capítulo 2 do livro do Travis Barr, que está disponível de graça). É por isso que no caso da telefonia, a Anatel, na década de 1990, promoveu a universalização do serviço de telefonia em troca de garantia de monopólio temporário para que as empresas recuperassem os investimentos. Funcionou.

Rivalidade vs. Não-Rivalidade e o argumento da Anatel.

Mercados são regulados por várias razões. Por exemplo, serem monopólios naturais, bens públicos ou semi-públicos, ou representarem “interesses nacionais”[2]. Nem toda regulação é eficiente, mas sabemos que bens públicos são passíveis de regulação ou provisão pública. Bens públicos são não-rivais e não-excludentes. Ou seja, o consumo de uma pessoa não afeta as demais e é impossível excluir um consumidor no uso do produto ou serviço. Um exemplo claro é segurança nacional – afeta todos os consumidores e não exclui ninguém. Nesse caso, a provisão pública é a melhor solução e em todos os países do mundo o governo local “fornece” esse serviço para a população. Uma nota: alguns autores chegam a estimar valores para bens públicos globais, como sistema financeiro estável, segurança e paz mundial, mudanças climáticas, excesso de doenças e acordos comerciais multilaterais, e as estimativas são bem interessantes.

A internet é claramente um serviço passível de exclusão, pois é tecnicamente simples cortar o acesso de alguém. A grande questão que está em discussão nessa mudança de política sobre o uso de internet é sua caracterização de não-rivalidade.

O uso de internet é não-rival, já que quando uma pessoa usa sua conexão não impede que outras pessoas usem. Em economês, o custo marginal de produção é zero. E é por isso que até o momento a internet no Brasil tem características de provisão de um serviço ilimitado. O problema, que é realmente trazido pelo uso do Netflix, youtube e outros serviços de alto tráfego, é que o uso de internet é não-rival desde que não haja congestionamento no uso da banda. Nesse caso, o uso de um indivíduo pode, sim, causar a desconexão ou lentidão para outro usuário. É mesma situação de uma estrada: é possível excluir indivíduos através de pedágios e seu uso é não-rival, desde que não haja um uso muito grande, que causaria engarrafamentos e, portanto, a rivalidade entre diferentes usuários.

O argumento da Anatel, não obstante as diferentes entrevistas do seu presidente, comentando inclusive sobre como os consumidores brasileiros foram deseducados pelas operadoras que sempre ofereceram serviços ilimitados, pode ser resumido em: com o aumento do uso da Internet pelos consumidores isso resulta em rivalidade e, portanto, é necessária a criação de planos com limitação de uso para incentivar investimentos em aumento de banda e não causar congestionamento do sistema. Antes de analisar se isso faz realmente sentido, como isso é feito no resto do mundo?

Limites sobre o uso de internet em residências no mundo.

Na maior parte do mundo desenvolvido (onde temos dados), o uso de internet para consumidores residenciais não tem limite de banda, como podemos ver no gráfico abaixo.

Proporcao dos planos com limites explicitos de dados

Fonte: OECD Communications Outlook 2013.

Contudo, em alguns países todos, ou quase todos, os planos tem limites de dados, embora deva-se observar que nesses países a estrutura de mercado é bem diferente do Brasil, com maior possibilidade de entrada de empresas e maior competição. Vou analisar dois casos, o dos EUA e da Austrália. Nesse último país, não havia, em 2012, a existência de planos ilimitados. A razão para isso era simples: o país, assim como o Brasil, tem grandes áreas pouco povoadas e, para universalizar o acesso, permitia as empresas liberdade na competição com limite de acesso (diferente do modelo brasileiro, que preferiu monopólios temporários para chegar ao mesmo resultado de universalização). Mas os limites eram altos, com média de 350GB então (no Chile e na Hungria, como forma de comparação, esse limite mensal era de pouco mais de 5GB em 2012). À medida que o mercado evoluiu, começaram a surgir planos ilimitados, embora a grande maioria dos planos ainda apresente limite. Quer escolher um plano de internet na Austrália? São muitas as possibilidades de escolha.

Nos EUA as coisas são diferentes. O mercado de provisão de internet foi desregulado e a entrada é livre. São centenas de provedores de internet, mas os resultados mostram que isso não promoveu a maximização do bem-estar social. Os preços no país são muito mais altos que em outros países desenvolvidos, como podemos ver na tabela abaixo.

 

Preco da Internet residencial no Mundo
Intervalo de preços de acesso à Internet, todas as plataformas, escala log, 2014, USD PPP. Fonte: OCDE, 2016

A média nos EUA é alta, assim como a a dispersão, pelo fato de que em muitas cidades os preços serem altos pela falta de competição. Como o mercado tem muitas barreiras à entrada, são muitos os oligopólios locais, o que acaba limitando a competição, em vez de aumentá-la.

Países ao redor do mundo tem diferentes modelos de regulação de internet, mas na maioria a entrada de novas empresas é incentivada, mesmo com todas as barreiras burocráticas para abertura de um provedor de dados. No Brasil não é assim. Ainda estamos quase em um modelo de monopólio natural no qual a maior preocupação da regulação é com reajustes tarifários e universalização, e a entrada de novas empresas não é vista como possível, ou mesmo desejável. Nesse caso, se há congestionamento da rede é função do regulador incentivar de alguma forma investimentos no aumento de capacidade. Contudo, há uma condição necessária para que a mudança de internet ilimitada para limites de banda:

Realmente deve haver problemas de congestionamento de rede.

Não sou engenheiro e não tenho dados sobre se isso realmente ocorre. Caso aconteça, é importante entender que, no modelo brasileiro atual, usuários que usam pouco a internet estão subsidiando os usuários de alto uso (heavy users). Nesse caso, faz sentido o comentário do presidente da Anatel de que “quem joga online gasta muita internet”, embora não seja papel do regulador colocar a culpa em ninguém e sim redesenhar o mercado para incentivar investimentos e otimizar os resultados para a sociedade.

Contudo, e é isso que importa, mesmo que haja congestionamento de rede, a pergunta relevante final é: a maneira mais eficiente de fazer isso é liberando as empresas para discriminar preços e restringir acesso? Nesse caso, a resposta, para o caso brasileiro atual, é provavelmente não.

Para responder essa pergunta, os modelos recentes de teoria dos jogos e economia industrial mostram que o comportamento das empresas não vai levar ao ótimo social, pois a Anatel não promove ou mesmo realmente permite a entrada de novas empresas, na prática. Em um oligopólio com barreiras à entrada, a solução mais provável é a de um equilíbrio cooperativo ou, no máximo, períodos de colusão seguidos de períodos de guerra de preços. Publiquei um artigo esse ano sobre o modelo de Abreu, Pearce e Stachetti que mostra como em oligopólios homogêneos o equilíbrio se alterna em períodos de colusão e competição. Você pode ler o artigo aqui. Assim, liberar as empresas oligopolistas para permitir discriminação de preços vai aumentar o excedente dos produtores sem aumentar o número de usuários ou aumentar o excedente dos consumidores de alguns grupos de usuários. A ideia da Austrália era permitir a discriminação de preços para ajudar na universalização do serviço em uma situação de abertura à entrada de novas empresas. Aqui o mercado continua fechado e já é universal. O problema é o possível congestionamento da rede. Nesse caso, a melhor solução deveria ser em dois estágios:

  • Liberar a entrada de novas empresas,  promovendo uma regulação não discriminatória entre as empresas e com garantias de manutenção de acesso universal.
  • Somente então liberar políticas de restrição de dados.

Nesse caso, poderíamos resolver os dois problemas, o de congestionamento de dados e o do subsídio cruzado entre heavy users e outros tipos de usuários. Ainda assim o mercado ofereceria planos ilimitados, pois algumas empresas se especializariam em nichos de mercado para heavy users. Hoje simplesmente isso não pode acontecer, pois a entrada não somente não é livre, como é desencorajada. Da forma que a política está desenhada, realmente parece que vai somente beneficiar as empresas sem garantir novos investimentos – de fato, as empresas vão poder alocar melhor suas bandas existentes entre diferentes usuários, extraindo maior renda sem investimentos. Isso vai poder ser provado através da análise de preços posterior à liberação, se isso acontecer. Mas, até lá, o melhor seria buscar outra solução para o congestionamento e a falta de investimentos do que permitir a pura discriminação de preços. Ah, e enquanto no resto do mundo o limite médio tem crescido (era de 350GB na Austrália em 2012, muito maior hoje em dia), no Brasil essa franquia está em cerca de 130GBs. O papel do regulador é maximizar o retorno social e não ir para os jornais dizer que determinados tipos de consumidores são responsáveis pela mudança de política regulatória.

Informação é um bem público e a maior transparência, de forma ampla, gera maior desenvolvimento econômico. Permitir a discriminação de preços e a existência de franquias para internet pode fazer sentido em um contexto econômico de competição e entrada de novas empresas, mas até que a Anatel mostre que isso vai realmente gerar novos investimentos e permitir a entrada de novos concorrentes, os custos à sociedade parecem bem maiores que os benefícios. A solução proposta pela Anatel não é um ótimo de pareto, mesmo se houver congestionamento na rede, e ainda pode não resultar em qualquer investimento em capacidade adicional. Assim como em muitos problemas brasileiros, a melhor solução é maior competição, seja entre as empresas existentes ou entrada de novas empresas. É para isso que a Anatel deveria estar voltada, nesse momento.

[1] Sim, eu sei que formalmente não existe prêmio Nobel em economia, mas por simplicidade assumo o nome que todos conhecem.

[2] Não é normalmente uma boa razão para existência de regulação, mas países paranoicos como o Brasil adoram usar esse tipo de argumento.