Nos posts anteriores vimos como os retornos sociais são maiores quando antes forem feitos, que estamos presos em uma busca insana por dados quantitativos de universalização, que nossas soluções do passado passaram por criar escolas, mais professores e expandir o sistema como um todo, com retornos marginais atuais decrescentes. Ainda, vimos como investir no ensino superior no Brasil é meio que jogar dinheiro fora e como políticas públicas populares de universalização podem dar muito errado.
Agora vou sair do diagnóstico para propostas. Precisamos redesenhar todo o sistema educacional brasileiro, já que temos problemas de oferta e demanda. Vimos que o problema não é falta de dinheiro, pois gastamos muito mais do que a média de países de renda média. Ainda assim, as propostas vão ser desenhadas com base nos axiomas que postei no início dessa série, mas, principalmente, com base nas seguintes ideias:
1 – Precisamos reduzir a desigualdade de renda intergeracional – ou seja, transferir renda dos mais velhos para os mais novos, e não o contrário, que é praxe no Brasil.
2 – As propostas tem que ser fiscalmente neutras. Como já gastamos muito em educação, precisamos mais é realocar recursos do que criar novos gastos. Em especial, devemos ser muito cuidadosos em criar qualquer tipo de gastos fixos.
3 – Não vou entrar em mudanças pedagógicas de forma direta. Não é a minha área e o nosso problema não está aí. Não somos a Finlândia, que pode abolir a divisão do conteúdo escolar por disciplinas. Nosso maior problema está longe de ser a qualidade dos professores, em muitos casos profissionais mal remunerados e dedicados (sim, tem também os incompetentes, mas duvido que acima da média mundial), ou o conteúdo escolar.
4 – As mudanças só terão efeitos no longo prazo. Não existe solução de curto prazo para os problemas educacionais no Brasil.
5 – Também não há solução simples. Como muito bem disse H.L. Mencken: “para todo problema complexo existe uma solução simples. Que está errada.”.
6 – E não há solução nacional. O Brasil é um país continental com problemas regionais muito diferentes. No Sudeste há poucos problemas de oferta de professores, em relação a outras regiões (atraímos poucos bons profissionais para o magistério, mas isso é mais questão de remuneração relativo do que qualquer outra coisa). A concentração da população em áreas urbanas em determinadas regiões leva a soluções de escalabilidade completamente diferentes de áreas rurais.
7 – Falhas de governo são tão importantes quanto falhas de mercado.
Experimentos em educação infantil – a ponte para o futuro.
Não adianta aumentar o número de escolas ou professores. Temos que acompanhar as crianças, especialmente as menos favorecidas, desde antes do seu nascimento. É claro que tal acompanhamento é caro. Contudo, o ponto de estrangulamento é o fato de que simplesmente não sabemos quais as melhores políticas sócio-educacionais para o desenvolvimento infantil. Não existe um manual de melhores práticas e as evidências científicas (discutidas em outros posts) é baseada, em sua maioria, em experimentos em países desenvolvidos (embora, em muitos casos, em regiões mais pobres desses países). Como as necessidades são ilimitadas e os recursos escassos, a melhor forma de estabelecer as políticas infantis no caso brasileiro é através da criação de um departamento de P&D para educação infantil.
Do ponto de vista estrutural, precisamos dividir o MEC em dois – um departamento de educação infantil e outro de educação formal. No primeiro, precisamos sair da estrutura burocratizada do governo brasileiro para algo mais flexível, experimental e participativo. Isso parece um sonho, mas não é. Existem casos de sucesso no Brasil e no mundo no qual estruturas para-estatais tomam para si funções do Estado em arranjos institucionais novos. Dois exemplos são o IMPA no Brasil e o Behavioural Insights Team no Reino Unido.
O IMPA e desenho de políticas públicas.
Pesquisa e desenvolvimento é uma das funções mais importantes da moderna administração estatal, mas algo que é quase ignorado no caso brasileiro. Não desenhamos políticas públicas com métricas bem definidas e enquanto no mundo a revolução dos random control trials (RCTs – você pode ler mais sobre isso no post anterior) tomou de assalto a avaliação de políticas públicas, aqui ainda temos muito poucos casos de sucesso. Um exemplo de uma chamada ainda aberta sobre avaliação de políticas públicas com RCT é a da organização internacional partnership for economic policy (PEP). Esse tipo de organização tem como objetivo avaliar políticas públicas, enquanto o Behavioural Insights Team, que surgiu como órgão do governo inglês, desenha políticas públicas usando o melhor de uma combinação de evidências científicas com autonomia para testar e avaliar essas políticas no Reino Unido. Essa última organização tem um histórico parecido com a única instituição realmente de ponta no Brasil, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA).
O IMPA surgiu como unidade de pesquisa criada pelo CNPQ, como instituto de pesquisa público. Em 2000, o IMPA se tornou uma organização social. Essa mudança permitiu ao instituto se tornar muito mais flexível na sua atuação, já que não depende somente de recursos do governo federal. Embora sua reputação internacional venha da qualidade da pesquisa desenvolvida por seus professores e pesquisadores, também é objetivo da instituição o treinamento de professores e a realização de projetos de melhoria do ensino de matemática em todos os níveis. Uma das medidas de maior sucesso da instituição, em relação ao desenvolvimento do ensino da matemática em escolas públicas, é o da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, que teve 18 milhões de candidatos em 2015. Temos uma burocracia que pode ser eficiente. Precisamos de mais IMPAs. Muitos mais. Organizações sociais que combinem o melhor do setor público e privado, com flexibilidade e transparência para executar políticas públicas de ensino infantil, fundamental e secundário. Precisamos também reformar o sistema de ensino superior, que consome grande parte dos recursos da educação sem trazer muito retorno para a sociedade.
Políticas Educacionais de Longo Prazo.
Precisamos pensar educação infantil ao longo do tempo através de um modelo de ciclo de vida de políticas educacionais, como o mostrado abaixo.
Pensar em políticas públicas de forma dinâmica seria algo novo no Brasil. Como nosso ciclo político é curto, os incentivos são para execução de políticas de governo, não de Estado, com pouco foco no longo prazo. Uma exceção é a universalização do ensino fundamental, política iniciada na década de 90 e que continua até hoje. Contudo, os maiores retornos sociais já foram conseguidos e precisamos de inovação em políticas públicas educacionais, que permitam que casos como o da escola Augustinho Brandão no Piauí. É por buscar inovações quando as políticas anteriores estão maduras é que países como a Finlândia podem experimentar, apesar de estarem no topo da qualidade da educação no mundo. E é por manterem políticas datadas, sem inovações, que países como a Suécia tem escorregado em termos de qualidade. As etapas para reformular o sistema educacional infantil (pré-escolar) seriam:
1 – Criação de organizações sociais regionais (ou até mesmo locais), nos moldes e governança do IMPA, com participação da sociedade civil e sem criação de empresas estatais;
2 – Estabelecimento de Regras de Financiamento para as Organizações e projetos educacionais, com recursos vinculados, mas que não financiem as organizações totalmente (mais sobre isso adiante);
3 – Entrega das ferramentas burocráticas que permitam a essas organizações desenhar, implementar e fiscalizar políticas de educação e acompanhamento infantil (até entrada das crianças nas escolas), com ou sem RCTs.
4 – Promover mecanismos transparentes de fiscalização da atuação dessas organizações pela sociedade, de preferência de forma descentralizada (com cobrança das populações e organizações locais).
5 – Estabelecimento de diretrizes gerais para as atividades de P&D e posterior implementação de políticas sócio-educacionais.
Por último, precisamos de recursos para isso. Minha proposta é a de que eles venham da diminuição, pura e simples, dos orçamentos das instituições federais de ensino superior (IFES), mas com contrapartida na consolidação e liberação das universidades para buscar recursos. Três pontos seriam fundamentais para isso: colocar no orçamento das IFES os salários de ativos e inativos, dar mais autonomia orçamentária para as IFES com o estabelecimento de regras de transferência, e aproximar as IFES dos modelos internacionais. O fato de que os salários de docentes e funcionários são pagos pela União distorcem os incentivos das IFES, que sempre buscam aumentar o número de professores, independentemente de qualquer necessidade de ensino ou pesquisa. Há muitas coisas erradas no sistema de ensino superior brasileiro para tratar de tudo aqui. Um exemplo menor, mas que mostra como a maturação de políticas deve resultar em inovações que transformem os incentivos dos agentes é o do sistema Qualis da Capes. No começo, o sistema de avaliação basicamente quantitativo, com diferenciação dos professores por quantidade de pontos produzidos pela publicação de artigos acadêmicos, serviu para incentivar os programas de mestrado e doutorado a cobrar publicações por parte dos professores. Foi ótimo, mas os gastos sociais, hoje, são maiores que os retornos, e em muitos programas os docentes são avaliados quase exclusivamente por um sistema de pontos cujo foco maior é na quantidade de publicação. Pior, em algumas áreas periódicos predatórios, sem qualquer valor científico, como WSEAS Transactions on Business and Economics, são bem classificados. Ou seja, existem incentivos para que docentes brasileiros publiquem artigos em periódicos sem qualquer valor. Isso sem contar que periódicos medianos, como o Applied Financial Economics, onde já publiquei, e International Journal of Quality & Reliability Management, são até classificados no estrato mais elevado na área de administração (A1), algo impensável em qualquer outro lugar do mundo.
Políticas educacionais que começarmos hoje, com foco no período de vida inicial das crianças (se possível, até antes do nascimento), somente gerarão retorno no longo prazo. Mais uma razão para reformularmos todo o sistema educacional brasileiro o mais rapidamente possível. Inovar, criar propostas sócio-educativas, testa-las, explorar e dar escala às melhores ideias, financiar organizações com recursos públicos e privados, com competição das organizações por reconhecimento, verbas e prestígio, são passos iniciais e essenciais para que possamos começar esse processo o quanto antes.
Um dos pontos que concordo ser essencial é a descentralização do sistema. É simplesmente impossível achar que um MEC consiga considerar todos os aspectos necessários a um sistema educacional único para um pais continental com populaçào na casa dos 200 milhões de habitantes. A própria centralização e burocracia necessárias cria uma distância entre a ponta, que atende o aluno, e os níveis estratégicos que mina qualquer solução. Enquanto tivermos um sistema monolitico, gigantesco e centralizado a escola continuará sendo vista como uma fábrica de fuscas de segunda mão e não as milhares de fábricas de Ferraris (semi-artesanais) que precisamos.
Nesse ponto algumas experiências promissoras me parecem ser as variadas Olímpiadas estudantis, projeto primeira chance e as feiras nacionais de ciências, como a promovida pela Dra. Roseli . Enfim, até aqui existem casos pontuais de sucesso.
outra experiência que, pessoalmente, venho achando interessante é a das escolas Waldorf. Não só pela pedagogia, mas também porque são escolas comunitárias, onde os pais têm uma relação diferente da cliente/prestador de serviço das escolas particulares normais. Espera-se mais responsabilidade e envolvimento dos pais, até mesmo qualificando esses pais através de livros e palestras. Ao mesmo tempo, pesquisadores com perfis mais ligados às ciências biológicas e comportamentais vêm corroborando alguns pontos observados por essa pedagogia e outras, como a Montessoriana.
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Concordo com você. Descentralizar é fundamental. Acho que a centralização foi necessária para universalizar o sistema. Ok. Fizemos. Agora é hora de mudarmos, já que os ganhos da universalização já foram, em sua maioria, realizados (empresas como a Kroton e a Estácio que os digam, pois se aproveitaram da explosão da demanda por ensino superior).
Você parece um grande especialista em pedagogia e, como colocou no seu post, chão de fábrica. Eu realmente não entendo sobre essa parte e por isso não emito opinião. Se puder me passar uns textos importantes, agradeceria. De qualquer forma, seus pontos são excelentes e complementares. Pena que ninguém realmente pensa em política de longo prazo no Brasil.
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Obrigado, na verdade minha formação é em design. Nos últimos anos me envolvi com a área de educação por interesse em Ensino a Distância e desenvolvimento material educativo, com um especial interesse em jogos educativos. Assim, o meu foco é um tanto específico e eu mesmo preciso ler mais trabalhos sobre estudos nacionais. O que, pretendo mudar ano que vem conduzindo alguns experimentos com material paradidático em escolas, se a proposta for aprovada.
Mas, de cara um que gostei muito foi:
JARVIS, P HOLFORD, J GRIFFIN, C. (2003) The theory & Practice of Learning (2ed.) London: Koogan Page.
Sobre políticas de longo prazo, já pensou em mostrar essa sua série para o senador Cristovam Buarque? Ele tem conhecimento, interesse no assunto e é usuário frequente do twitter.
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Seus textos fazem a gente pensar a Educação para além dos clichês e “cacoetes” do campo.
Tenho que dizer que tenho “mixed feelings” com relação às propostas.
Ao mesmo tempo em que percebo como elas poderiam dar certo, penso ser uma temeridade colocar a Educação pública na mão de OSs diante da péssima experiência das OSs na Saúde e em outros campos aqui no Brasil.
Em grandes centros já é difícil evitar os desvios éticos e pedagógicos que podem surgir (imagine OSs controladas pela Assembleia de Deus???) mas em pequenos municípios ou estados do Norte, Nordeste a coisa pode realmente ser desastrosa (pela frouxidão da fiscalização e controle, bem entendido).
Um problema muito sério nosso é que o período mais decisivo para a Educação fica a cargo do município, enquanto aqueles que trazem menos retorno estão com estados e União. Isso fragiliza o que poderia ser a solução (investir em pré-escola e primeiros anos), porque os municípios menores e mais carentes não conseguem investir ou formar/capacitar professores adequadamente. É mais um contra-senso nosso.
Sobre o Ensino Médio (que enfrenta uma crise no mundo todo) acho que o ENEM aponta para um caminho que as escolas ainda não seguiram, que é o de integrar mais fortemente conteúdos e disciplinas ao invés de manter uma divisão que não faz mais sentido no mundo de hoje (nem no do futuro).
A escola simplesmente não faz mais sentido para os jovens.
Passar metade do dia trancado numa sala com outros 40 jovens, para quê?
Acho que a ligação do “trabalho” escolar com os desafios da comunidade, da sociedade, a participação política e social, o currículo organizado por projetos, tudo isso poderia dar sentido e gerar resultado para a produção escolar, valorizando esse espaço e tempo e criando impacto na vida das pessoas.
Enfim, essa série de posts está ótima!
Obrigado!
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Caríssimo, gosto dos seus pontos. Mas deixa eu tentar mostrar uma contradição no seu argumento. As OSs da Saúde não foram montadas como forma de P&D e universalização da saúde de uma forma racional. Só porque não deu certo em um lado, não quer dizer que vai dar errado no caso da Educação (vide o IMPA). Mas se concordamos que os municípios, especialmente no interior do Brasil, são incapazes de realizar seu trabalho direito, como fazer? Não vai ser solução algo super centralizado (as Olímpiadas, por exemplo, não seriam solução para tudo). Precisamos de organizações capazes de aliar competência operacional com capilaridade. As OSs de saúde têm problemas de governança e o sistema de desenho. Acho mais fácil desenhar um sistema educacional com governança do que ficar enfiando mais recursos em projetos nacionalizantes nos quais a ponta não está preparada para realizar (e isso assumindo que essas soluções nacionais seriam úteis).
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Ah, e enquanto concordo imensamente com você que a escola não fala ao jovem, meu principal ponto é o de que quando o jovem entra na escola já acabou. O estrago já foi feito. Se não tratarmos da educação uterina (er… liberdade de expressão) e do ano zero ao um, não adianta nada reformar currículos, escolas etc.
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Nesse ponto eu já li que a melhora tímida nos índices internacionais de educação (PISA e outros) que ocorreram no Brasil podem ser melhor creditados ao bolsa família do que à melhorias em nosso sistema educacional nos últimos anos.
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Prezado Luís,
pelo que entendi da sua idéia achei ela melhor que a proposta pelo senador Cristovam Buarque de federalizar a educação. Restringindo essa federalização ao fundamental, certo? Ainda que ele tenha feito uma proposta interessante ao propor que o nível fundamental e médio fiquem com o MEC e o superior passasse para o MCTI. Mas, eu acho que não dá para centralizar um sistema educacional num país desse tamanho, os militares tentaram isso e deu no que deu.
No caso americano, por exemplo, a descentralização resulta em estados com sistemas educacionais ótimos, como o texano e outros que me pareciam horrendos, como o da Flórida..
Outro ponto interessante que você levantou foi sobre o ENEM, apesar das minhas ressalvas sobre esses testes ignorarem um monte de fatores importantes na formação dos estudantes e sua tendência a se tornarem um fim em si mesmos e o excesso que tarefas que se espera dele. Inclusive, porque muita gente crítica a forma como os resultados são divulgados. Mas admito que ele está tendo um efeito benéfico ao incentivar as escolas a pensarem de forma multidisciplinar, o que já foi um avanço.
O ensino médio está em crise mesmo, no mundo todo. Estamos descobrindo que o sistema falha ao minar diversas habilidades importantes como motivação e criatividade. Mas isso só reforça a necessidade de descentralização e P&D. É preciso experimentarmos, de forma sistemática e controlada, para chegarmos a soluções para o nosso contexto. Sim, eventualmente teremos resultados ruins em casos pontuais, mas convenhamos já temos eles hoje de forma difusa.
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