Muito se escreveu sobre a PEC, mas ainda falta clareza sobre os reais impactos da proposta de emenda à constituição. Primeiro, disclaimer: estou mais do que acostumado com o fato de que as pessoas constroem narrativas e buscam somente evidências que suportam suas teses. É assim nos EUA, no Brasil e em todo lugar. Mas orçamento público é algo bem complexo e que muito pouca gente entende no Brasil e no mundo. Minha posição é que não tenho preconceito em relação a PEC a priori. Eu sei que os dois extremos da discussão estão errados, tanto quem acha que a PEC é a salvação do Brasil ou que é uma ferramenta neoliberal de dominação do capital explorando os pobres dos trabalhadores. Vamos aos mitos e fatos.

Mito: Sem a PEC o país quebra.

Já vi comentários de que sem a PEC o Brasil viraria uma Venezuela. É mentira. Em economia pensamos em first-best solutions, ou seja, qual seria a melhor solução possível para o problema do país. A PEC não é nem de longe a melhor solução para os problemas fiscais do país; as soluções passariam desde diminuir os abusos micro até reformas fiscais e da previdência. Poderíamos, por exemplo, ter aumento na alíquota do IR ao diminuirmos impostos sobre o trabalho. Se subíssemos impostos e reduzíssemos muitos gastos poderíamos prescindir da PEC. Há milhões de combinações possíveis para resolver o problema de credibilidade fiscal do Brasil. A PEC é a solução que o governo achou politicamente adequada. Não é o melhor dos mundos mas ataca de fato um dos problemas do país, que é a falta de controle dos gastos públicos.

Mito: A PEC congela gastos de educação.

Esse mito é fácil de debelar. O Fundeb (O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) está fora da PEC. A lei não determina um teto para a educação, mas sim um piso, que é de 18% dos gastos públicos. O governo poderá gastar mais que 18% do seu orçamento em educação, mas não menos. Depois de 2018 o piso será reajustado no mínimo pela inflação.

Mito: A saúde perderá bilhões de reais com a PEC.

Esse mito vem de uma matéria do IPEA que argumentava que o orçamento da saúde perderia R$783 bilhões ao longo dos anos com a vigência da PEC. O artigo está errado por vários motivos, mas o maior porque considerava uma versão anterior da lei. O próprio IPEA lançou uma nota mostrando os erros do seu estudo anterior. De novo, o que a PEC determina é um piso para os gastos com saúde. Veremos adiante que há sim risco de comprometimento futuro do orçamento para essa linha importante para a sociedade, mas esse risco não tem probabilidade 1.

Mito: A PEC engessa o governo por 20 anos.

A PEC vai ser revista ao final do nono ano por medida provisória. Ela é anunciada como tendo validade por 20 anos mas, na prática, as maiores restrições valem mesmo por nove anos. E no Brasil adoramos desrespeitar leis. Por que seria diferente com a PEC? Ela vai valer somente se os próximos governos a respeitarem, com apoio do legislativo e judiciário.

Mito: A PEC é um instrumento neoliberal que não ataca os rentistas porque não limita os juros pagos pelo Estado.

Os juros não são peça orçamentária porque não podem ser definidos de forma ex-ante, dependendo da política monetária e do mercado de fundos emprestáveis (loanable funds). O governo, através do Banco Central, determina a taxa de juros nominal, mas não a real. Nesse sentido, a PEC já trouxe alívio à conta de juros, pois os juros reais de médio e longo prazo caíram, já que os agentes locais e estrangeiros têm agora mais confiança na sustentabilidade fiscal de longo prazo do país. Isso é um fato, tirado da estrutura a termo da taxa de juros, e não uma opinião. Como exemplo, os juros reais para 2024 chegaram a 7,5% ao ano em meados de 2015 e estão agora em 5.7%. Se todo mundo achasse que a PEC é a solução para o futuro do Brasil, esses juros estariam hoje em uns 2% ao ano (prêmio de risco soberano). O fato de que os juros baixaram, mas não significativamente, mostra que os agentes econômicos não encaram essa proposta como responsável, sozinha, pela saída da crise.

O que a PEC faz?

Ela determina os gastos globais do governo mas não como ele aloca seus gastos. Gestores públicos ainda deverão ter capacidade de determinar como vão ser gastos os recursos de impostos, mas terão sim um limite global para trabalhar. Os gestores públicos tinham limites mais duros durante a vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, que grosso modo determinava que toda despesa deveria indicar sua fonte de receita. Ou seja, a PEC é uma versão light da LRF, no sentido de restrição à atuação dos gestores. A maior diferença macroeconômica é que a LRF era anti-cíclica, enquanto a PEC não. Teremos ainda déficit público por um tempo, o que não seria possível sob a LRF.

Qual o maior benefício da PEC?

Explicitar as prioridades de gastos pelos gestores públicos. Todo gasto terá custo de oportunidade, respeitados os pisos e, portanto, qualquer demanda atendida pelo governo significará uma outra não atendida.

Qual o maior risco da PEC?

Explicitar as prioridades de gastos pelos gestores públicos. Todo gasto terá custo de oportunidade, respeitados os pisos e, portanto, qualquer demanda atendida pelo governo significará uma outra não atendida.

Resultados da PEC.

Qualquer pessoa que afirmar que a PEC será excelente ou desastrosa pro Brasil está se baseando em ideologia, não ciência. Não dá para saber, com alto grau de certeza, exatamente quais os efeitos, intencionais ou não, que a PEC terá sobre o Brasil no curto, médio e longo prazos. O que temos, de verdade, são algumas possibilidades que dependem do contexto. Por exemplo, é possível que os gastos com saúde sejam sacrificados no longo prazo? Sim, mas também é possível que eles aumentem em termos reais.

Não é um bicho papão. Pode não funcionar (a LRF foi jogada no lixo). Não vai acabar com a educação ou saúde; isso é espantalho. Vai precisar de uma reforma previdenciária para funcionar, muito provavelmente.

PEC e sua variável de ajuste.

A grande variável de ajuste da PEC é a parte do orçamento dedicada aos salários e carreiros do funcionalismo público. De forma bem direta, se o governo não respeitar o teto global, não poderá contratar funcionários públicos direta ou indiretamente, nem conceder qualquer tipo de aumento, mesmo nominal, a qualquer carreira do funcionalismo (salvo duas exceções: reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa e aquelas decorrentes de vacâncias de cargos efetivos). Não deverá haver concursos públicos. Nada.

Estática vs Dinâmica.

Do ponto de vista estático eu seria a favor da PEC, pois seus benefícios parecem bem maiores que seus custos. Mas ela não é uma Brastemp. Eu concordo.  O seu efeito sobre a sociedade, bom ou ruim, depende de uma série de fatores dinâmicos, nem todos completamente bem entendidos pela sociedade. Vamos aos cenários possíveis em relação aos efeitos da PEC sobre a economia brasileira.

Mundo cor de rosa e a PEC como instrumento de transformação institucional.

A PEC não deveria ser necessária se tivéssemos respeitado a LRF, que faz parte de uma tentativa de transformação institucional. Fortalecimento de instituições, como segurança jurídica e regras de planejamento econômico, cria credibilidade e crescimento de longo prazo. Para que a PEC funcione como os seus maiores propagandistas pregam são necessários alguns condicionantes: reforma da previdência, comprometimento, execução, melhora do ambiente interno de investimentos e manutenção de um cenário externo neutro.

Os condicionantes internos estão relacionados à institucionalização da PEC na criação do orçamento. O ente público deverá continuar comprometido com a sustentabilidade fiscal e executar de forma exemplar o processo orçamentário. Esse comprometimento depende de grande capital político. A variável de ajuste está nos gastos com funcionários públicos. Será que numa situação de não cumprimento do teto o governo conseguiria enfrentar o lobby do funcionalismo? No cenário cor de rosa esse embate não aconteceria porque o governo, comprometido com a sustentabilidade fiscal, nunca ultrapassaria o teto. A confiança dos investidores diminuiria os juros reais, o país voltaria a crescer e geraria superávit primário que limitaria o endividamento público. Em dez anos revisaríamos a PEC e teríamos um país mais sólido, com recursos para nos tornarmos um misto de Dinamarca, Inglaterra, Estados Unidos e Plutão. Afinal, sonhar não custa nada.

Tivemos comprometimento com a LRF de 2000 a 2012. Nesse período a taxa de juros real caiu de 14% para pouco mais de 4% ao ano. Em 2012 começou um processo forçado de queda nos juros com descontrole fiscal que contribui para nos levar a atual situação. O que importa é que se tivéssemos mantido comprometimento com a sustentabilidade fiscal poderíamos estar numa situação bem melhor que os atuais juros de 6% ao ano.

taxa de juros real brasil.jpg

A reforma da previdência é necessária para que se respeite a PEC, pois sem ela os gastos com essa rubrica crescem de tal forma que impediriam o respeito aos limites mínimos à educação e saúde, por exemplo. Ou seja, a PEC é dependente da reforma da previdência para funcionar. Essa reforma provavelmente contará com ampliação da idade mínima para aposentadoria (algo que considero saudável, pois o Brasil é cheio de jabuticabas em relação a aposentadorias especiais) e desvinculação do salário mínimo para aposentados, tema mais controverso.

A PEC têm como objetivo reconstruir a credibilidade e levar à queda dos juros reais em 3-4 anos (mesmo no mundo ideal não vamos sair do buraco em menos de 18 meses). O mundo continuaria andando de lado como nos últimos 4-5 anos. Não precisamos mais do que isso para sairmos da crise, mas somente se todos os mecanismos institucionais funcionarem de forma combinada com um alto capital político. Voltaríamos a crescer, teríamos um orçamento controlado e todos viveríamos felizes para sempre, mas trabalhando até os 65 anos.

A PEC e o desmantelamento do Estado brasileiro.

O maior risco da PEC é ela funcionar como mecanismo de captura dos interesses de determinados grupos sobre o processo orçamentário. Como a PEC impõe um orçamento limitado, valeria a política do meu pirão primeiro. Grupos de atuação com maior força política conseguiriam priorização no orçamento e, portanto, extrairiam ainda mais recursos da sociedade.

Vale lembrar que o Brasil é recheado de extrativismo por parte de diversos grupos de interesse, desde empresas que buscam renúncias fiscais e subsídios até sindicatos de funcionários públicos que reivindicam aumentos reais constantes. A PEC poderia institucionalizar um conflito orçamentário no qual ganham os grupos que representam a elite em detrimento do resto da sociedade. Um real conflito de classes travado no processo orçamentário. O piso da educação e saúde seria somente isso, um piso, e ainda assim seria concentrador de renda, com grupos de interesse usando, como hoje, orçamento da educação para favorecer as elites que estudam em universidade pública em detrimento dos pobres que precisam de intervenção e educação nos anos iniciais.

O cenário mais provável.

O mundo cor de rosa é um bonito conto de fadas e o cenário de desmantelamento do Estado uma boa teoria da conspiração. A sociedade brasileira é estatista e deverá continuar sendo. Achar que o governo golpista malvadão vai conseguir fazer reformas ultraliberais sem consequências políticas é ignorar o básico de ciência política. O cenário mais provável para a PEC é: ela funcionará como restrição orçamentário por alguns anos, o jogo político determinará a alocação de recursos, que estará longe do ótimo, e vamos sair da crise aos poucos, sem chegarmos ao mundo cor de rosa e pagando o pato pelos erros passados e presentes por um bom tempo. Se ela se tornará permanente só o tempo e os próximos governos dirão.

Resumo da ópera. A PEC 55/241 é necessária. Explicita escolhas orçamentárias de gestores públicos. Mas é um andorinha que sozinha não fará verão. Não é a salvação. Se nada mais for feito ela vai acabar sendo inócua, sendo repelida formalmente ou desrespeitada, como a LRF. Depende de uma série de reformas institucionais para dar certo de verdade. Será que o(s) governo(s) terão comprometimento para um orçamento que melhore a vida da maioria das pessoas, alocando recursos para as áreas nas quais o Estado brasileiro realmente precisa participar melhor, como educação e saúde? Provavelmente não. Quer dizer então que estamos condenando os brasileiros a um futuro sem educação e saúde, com desmantelamento da participação do Estado nessas áreas? Também não. Devemos continuar na nossa trajetória de lenta melhora dos indicadores sócio-educacionais. A PEC deverá importar menos do que as pessoas acham. Tudo vai depender dos próximos passos. E que o próximo governo estabeleça as prioridades de forma correta. A PEC pode até ajudar, mas sem a escolha de um bom próximo governo tudo estará perdido. Com ou sem PEC.