Os direitos trabalhistas não protegem os trabalhadores. Isso é um dos mais persistentes mitos sobre a legislação trabalhista brasileira. O que as leis trabalhistas fazem, no Brasil e em grande parte do mundo, é proteger certas classes de indivíduos em detrimento de outros, além de forçar uma realocação de recursos produtivos em favor de grupos de interesse, sejam eles certos tipos de empresas ou trabalhadores, sindicalizados ou não. Por exemplo, a existência do FGTS e da multa de 50% em caso de demissão sem justa causa beneficia empregados mais velhos em relação aos mais novos, o que é bem comum no Brasil, um dos países que mais punem as novas gerações para favoreceras os mais velhos. As barreiras à demissão também privilegiam os empregados em relação aos desempregados, e o fato de que dois indivíduos com o mesmo cargo não poderem receber valores diferentes redistribui recursos dos mais produtivos aos menos produtivos, além de reduzir a produtividade agregada.

O fato de que as leis trabalhistas são redistributivas em vez de justas não é motivo, por si só, para aboli-las. Por exemplo, a existência do salário mínimo claramente diminui a empregabilidade dos trabalhadores brasileiros menos produtivos. Contudo, a sociedade considera as perdas sociais causadas por isso – maior desemprego do que existiria sem a existência do salário mínimo e as transferências de renda para apoiar os trabalhadores menos produtivos – menores que seus benefícios, como diminuição do poder de negociação das empresas com trabalhadores menos qualificados e maior renda desse tipo de trabalhador em indústrias com demanda inelástica por emprego pouco qualificado.

O objetivo dos direitos trabalhistas é maximizar uma função de bem-estar social no qual os custos, em termos redistributivos, são menores que os benefícios, que são mensuráveis. Argumentos morais, como justiça social, são muito menos importantes do que entender realmente as consequências de cada uma das medidas e, mais ainda, da interação entre as mesmas. É por isso que proponho um experimento baseado na experiência dinamarquesa, no qual haveria uma flexibilização dos direitos trabalhistas para aqueles que ganham mais de R$135.333,00 por ano (algo em torno de R$10.000,00 por mês).

Os países escandinavos são semi-paraísos socialistas, ricos, homogêneos, sustentáveis e um modelo a ser seguido pelo mundo. Certo? Na verdade, não. Esses países já deixaram de ser socialistas há muito tempo, e um bom exemplo está nas política dinamarquesa de flexicurity, que é baseada num tripé de flexibilidade, segurança e políticas trabalhistas ativas. Dou aula na Copenhagen Business School uma vez por ano e mesmo os professores de lá podem ser demitidos (ou contratados) com razoável facilidade.

Flexicurity
Tripé do modelo flexicurity da Dinamarca.

A ideia do sistema é simples: estabilidade de empregabilidade em vez de estabilidade no trabalho. Ao promover a flexibilidade em vez de estabilidade no trabalho, com rede de segurança para ajuda aos desempregados, a dinâmica do mercado de trabalho muda, os trabalhadores e empresas se tornam mais produtivos, ambos podem arriscar mais, contratações (e demissões) aumentam, assim como a média salarial, trabalhadores mais velhos tem mais incentivos a ser produtivos (e recebem por isso) e recursos da sociedade são alocados de forma mais eficiente, tanto em termos privados, via mercado de trabalho, como públicos.

Um exemplo de como o sistema funciona está na alocação de direitos como férias e fundos de pensão privados. Em ambos os casos esses direitos estão ligados aos indivíduos, e não ao trabalho atual. Assim, trabalhadores podem mudar de emprego sem perderem direitos que estariam relacionados ao trabalho atual. As empresas também, por sua vez, podem demitir e contratar sem maiores barreiras. Como parte da renda do trabalhador é garantida pelo sistema de seguridade social, tanto trabalhadores como empresas podem assumir mais riscos, o que significa que, no agregado, o Estado gasta menos com seguridade social, pois o tempo médio de um desempregado cai muito, e o aumento de rotatividade é friccional. A maior parte dos gastos passa a ser com políticas ativas de treinamento e recolocação garantem que trabalhadores demitidos consigam recontratações rapidamente. Os resultados são diretos: trabalhadores dinamarqueses trocam muito mais de empregos do que em outros países, o desemprego é baixo, e trabalhadores jovens encontram facilidade em encontrar empregos, algo incomum na Europa.

É claro que importar algo da Dinamarca para o Brasil é impossível, e o que funciona para um país razoavelmente igualitário de 5,5 milhões de pessoas não funcionaria na Belíndia, descrição ainda adequada a um dos países mais desiguais do mundo. Contudo, precisamos de experimentos para trazer o Brasil para o século XXI, e seria relativamente simples estabelecer um sistema desigual no qual: para trabalhadores com renda anual menor R$135.333,00 as leis trabalhistas continuariam iguais, enquanto haveria um sistema completamente diferente, e muito mais flexível, para os trabalhadores com salário maior que esse valor. Isso afetaria cerca 3 milhões de indivíduos[1], um número que, não por coincidência, se aproxima do tamanho do mercado de trabalho da Dinamarca.

Os benefícios de um experimento como esse seriam:

1 – Aumentar a produtividade de empresas e empregados, principalmente aqueles que trabalham em setores de alto valor agregado;

2 – Incentivar a tomada de risco tanto por empresas quanto empregados, que poderiam explorar o mercado de trabalho sem perda de direitos por tempo de serviço em uma empresa;

3 – Diminuir o desemprego;

4 –  Aumento de renda da camada de trabalhadores que ganham pouco menos que esse valor, já que empresas teriam incentivos a aumentar a renda desses trabalhadores para tornar sua empregabilidade flexível;

5 – Diminuir a demanda por serviços judiciais no Brasil;

6 – Testar se o contrato social brasileiro estaria preparado para uma flexibilização futura maior das leis trabalhistas.

Claro que nenhuma mudança de legislação está livre de riscos, e a maioria deles estaria associado a uma mudança de cultura de trabalho para essa camada de trabalhadores. Além disso, trabalhadores marginalmente produtivos, mas protegidos pelas atuais leis trabalhistas, poderiam não conseguir recolocação, mesmo em um mercado de trabalho flexível.

Como mudanças de leis trabalhistas geram muita ansiedade na população brasileira, uma das melhores formas de testar se um mercado flexível de trabalho funciona na realidade brasileira seria estabelecer um mercado no qual essa flexibilização afetaria uma camada pequena da população. Claro que esse plano ainda precisa ser detalhado, para determinar que direitos podem ser diminuídos ou retirados, que tipos de contratos seriam permitidos (temporários e permanentes), como funcionaria o mecanismo de recolocação etc. Ainda assim, seria uma forma rápida e relativamente indolor de aproximar o Brasil do século XXI, ainda mais importante em um momento de crise econômica, com desemprego crescente, em todas faixas de trabalho.

[1] Proporção relativa da PEA que recebia mais que 10 salários mínimos no Censo de 2010.