Esse post é sobre dois dos meu artigos na Folha de S. Paulo, onde escrevo a cada 15 dias. Em cada artigo tento desmistificar algumas características do mundo moderno e do jeito de ser brasileiro que são empecilhos para produtividade e felicidade (as duas não estão necessariamente correlacionadas!).

2019 01 12 nao ame seu trabalho

2018 02 24 - accountability-cortado

Accountability e os problemas brasileiros.

Estava na casa de um amigo quando o filho bateu com a canela na mesa. Após acalmá-lo, o pai pegou sua mão e o fez repetir: “mesa feia!”.

Nas minhas andanças percebo que falta ao brasileiro accountability, uma ausência tão sintomática que nem a palavra existe em português – a melhor tradução é responsabilização individual e essa ainda assim é falha. Aqui nada é nossa culpa. O filho vai mal na escola. Os pais transferem a responsabilidade para o professor. Que reclama do diretor e das condições de trabalho. O diretor culpa o governo, que por sua vez transfere tudo para a crise internacional ou o FMI.

Nas empresas, o mais comum é a perda de produtividade por problemas que não tem dono. Nossa falta de responsabilização está até na língua. Dizemos “o copo caiu”, quando ele escorrega da nossa mão. Não foi o nosso descuido, afinal. Foi o copo que se suicidou. Também, quando queremos comparar vencimentos, perguntamos: “quanto você ganha?” O salário é um presente, quase uma dádiva divina, e não há nenhuma relação entre esforço e remuneração. Obviamente, no resto do mundo não é assim: perguntamos “quanto você faz” em inglês ou mandarim e é natural negociar aumentos de salário se somos mais produtivos.

No Brasil, criamos a figura mítica da indústria das multas. Ora, é fácil provar que ela não existe. Vamos supor que cada motorista comete somente 10 erros por dia (eu, como bom brasileiro, erro até mais que isso, incluindo não verificar limites de velocidade, esquecer da seta ou ultrapassar pela direita). Se dirigimos 300 dias por ano, são 3.000 erros. Mas nossa média é de menos de 3 multas por carro particular por ano. Ora, que indústria poderia sobreviver com uma taxa de acerto de 0.1% por ano?

O que está na língua vale para o sistema político. Nos defendemos dizendo: “não fui eu” e, pior, dizemos “não votei nele!” para reclamar do governante horroroso. Jânio Quadros renunciou citando forças ocultas. Uns gritam contra “o golpe” e “os paneleiros”, enquanto outros vociferam contra os “esquerdopatas”. Os inimigos são sempre indefinidos (elite, burguesia ou o sistema financeiro), pois assim é possível transferir toda a responsabilidade para eles.

Não, a culpa não é dos outros. É toda nossa. Não há complô dos EUA contra nosso desenvolvimento, nem um grupo de Iluminati decidindo para onde vai o país. Isso também vale no dia a dia, quando errarmos no trabalho ou nosso filho tira nota ruim. Mesmo que não tenhamos votado no horroroso prefeito que abandona a cidade no Carnaval por causa da sua religião, devemos reclamar e ir às ruas para que cumpra suas promessas. Para aumentar nossa produtividade é preciso sermos donos de nossas ações.

Um colega que dava aula na França comenta, para quem quiser ouvir, como ficou impressionado com a atitude das secretárias do departamento da universidade. Elas não fazem corpo mole, mesmo tendo estabilidade. Afinal, são pagas por todos os franceses. Ninguém no departamento admite uma pessoa sugar os recursos da sociedade para si. Fazer corpo mole significa se locupletar do resto da população, o que é inaceitável. Isso vale onde quer que eu já tenha dado aulas. Problemas tem dono. Nossa malandragem custa caro. Precisamos mudar nossas normas sociais. Estamos em um país desigual e no qual precisamos remar juntos. Ficar fugindo da responsabilidade e culpando os outros não vai nos levar a lugar algum.

Não ame o seu trabalho.

Não ame seu trabalho ou sua carreira. É uma armadilha. O maior truque do mundo moderno foi inventar a ideia de que as pessoas devem amar o que fazem. Vestir a camisa da empresa, criar uma identidade baseada no emprego e colocar as prioridades da empresa acima das suas são somente formas de entregar renda extra para empresas que, na maioria das vezes, não devolvem a lealdade que cobram dos empregados.

Vários estudos comprovam que trocar de empresa é a forma mais eficiente de subir na carreira e ganhar mais. Como as empresas fazem para manter os empregados ganhando menos do que poderiam? Criando a ideia de vestir a camisa e cobrando lealdade. Já cansei de receber colegas que queriam mudar investir no seu desenvolvimento, talvez mudando de empresa ou carreira, mas pediam para eu não comentar nada com seus chefes. Afinal, pensar em sair da empresa é traição!

É impressionante a presença da ideia de que nossa identidade DEVE estar ligada à nossa profissão. Pior, dizemos aos nossos filhos que eles devem sempre seguir o que amam, buscando no trabalho a realização pessoal. Mas nossa identidade não deveria depender do emprego. O salário deveria ser um meio de realizarmos o que queremos e não um fim em si mesmo.

Claro que não amar o trabalho não significa ser um robô que trabalha somente em troca de salário. Respeitar os colegas, ajuda-los a subir na carreira e buscar relações nas quais a empresa e nós saiamos ganhando deveria ser o padrão. Mas não é. Não devemos jurar lealdade à uma entidade que muitas vezes não tem memória. Pior é que, mesmo no caso de empresas familiares, colocar a empresa acima de tudo acontece. Cansei de ver famílias brigando porque o fundador colocava a saúde da empresa acima dos desejos e habilidades dos familiares. E funcionários de empresa envolvida em casos de corrupção defendendo cegamente a organização.

Sou um medíocre jogador de tênis, basquete e role-playing games, leitor voraz de quadrinhos, ouvinte de thrash metal, visitante constante de museus, viajante incansável, e muitas outras coisas antes de ser um professor de economia. Viveria feliz fazendo essas coisas se não precisasse trabalhar para viver. Estudo muito para me manter atualizado na minha profissão, mas ela não me define. Busco criar relações de ganha-ganha com as empresas, mas sempre mantenho abertas opções para não tomar uma rasteira (e crescer na carreira). Isso não me impede de ficar anos na mesma empresa, mas numa constante renegociação informal na qual não só um lado ganha.

No fundo, devemos dizer à nova geração: se concentrem no que vocês tenham aptidão e que vá ter mercado no longo prazo. Busquem ser felizes com outras coisas que não o trabalho. E gastem algum tempo criando opções de empresas e até carreiras. Só assim para que haja um equilíbrio saudável entre trabalho e lazer que permita que as pessoas tenham carreiras (e não somente empregos) e não se descubram acorrentadas a um emprego que só suga e pouco devolve. Há como ser o melhor no que se faz sem amar o trabalho.

Esse truque moderno de culpar as pessoas que buscam seus sonhos fora da empresa só tem um objetivo: retirar dinheiro do seu bolso. Afinal, quem não quer alguém super motivado que vai trabalhar por um salário mais baixo porque ama o que faz? A não ser que de bom grado você queira construir uma identidade na qual o emprego lhe defina, fuja dessa armadilha.