Quando vieram com o papo de que não existe racismo no Brasil, vocês podem responder: sim, existe, e aqui está a evidência científica. Qual é ela? Nesse artigo discuto evidências sobre racismo, a eficiência econômica das cotas raciais e porque esse tipo de cota e ações afirmativas que levam em conta etnia são preferíveis a critérios exclusivos de renda. No final do artigo, também mostro como o lugar comum sobre raça no Brasil é vazio de conteúdo, embora muito sedutor. “Somos todos humanos”, “trato todo mundo da mesma forma e por isso não reconheço raça”, e “cotas são racistas” são argumentos baseados em uma de duas opções: ignorância (que curamos com conhecimento) ou desonestidade intelectual (essa não dá pra resolver fácil). Mas antes disso, há evidência de que o Brasil é racista?

O Racismo no Brasil.

O bom da ciência é poder mostrar claramente que o Brasil é sim racista. E se isso lhe doeu porque você não se considera racista, que bom! É pra ficar desconfortável mesmo, pois as evidências que vou descrever abaixo são só uma parte pequena de todos os estudos que já demonstraram a existência do racismo estrutural, sistemático, e ônipresente na nossa sociedade.

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As evidências científicas corroboram muito bem o argumento de Djamila Ribeiro, de que no Brasil o racismo estrutura todas as relações sociais. O racismo está sempre presente e os casos que explodiram na mídia, como o do jovem morto por um mata-leão de um segurança do Extra, são representativos de uma sociedade doente que finge que não tem nada de errado com ela.

Marcus Lima e Jorge Vala fizeram, em 2004, um experimento científico controlado, no qual indivíduos brancos deveriam avaliar dois grupos, negros e brancos, através de fotografias, sendo que em cada grupo havia pessoas bem e malsucedidas financeiramente. Os resultados, replicáveis, mostram uma realidade chocante. Os negros bem-sucedidos são percebidos como mais brancos. Para piorar, quanto mais eles são percebidos como brancos, mais características tipicamente humanas lhes são atribuídas. O inverso se passa para os negros mais percebidos como negros: desumanização.

Obviamente, o processo de desumanização se traduz como perda de salário. No Brasil, empregadores reportam dados dos trabalhadores, incluindo-se raça. Cornwell e co-autores, em 2017, mostram que somente ser classificado como branco significa um salário 7% maior do que ser classificado como pardo ou negro. Ademais, se dois empregadores discordam da cor do trabalhador, uma mudança de classificação de pardo ou negro para branco gera um aumento de salário de cerca de 4% quando uma pessoa muda de emprego.

Francis-Tan estudou irmãos de cores diferentes. Não há muita diferença educacional na adolescência. O que acontece quando os irmãos entram no mercado de trabalho e tentam continuar os estudos? O racismo vem com força. Os irmãos negros passam a conseguir menos empregos formais e, quando conseguem, têm empregos de menor qualificação, tendo dificuldades para continuar estudando.

Cansei de dar aula para alunos e executivos onde turmas inteiras não tinham nenhum negro. Kabengele Munanga, antropólogo, está certíssimo quando afirma que o racismo é um crime perfeito no Brasil. Muita gente não acha nem estranho quando somente 3% dos formados em Medicina na USP são negros ou quando executivos de uma empresa são todos brancos. As cotas são pouco. Esse crime perfeito e invisível precisa de mais ações do que somente garantir mais lugares em universidades (e concursos). Entre as principais ações afirmativas incluem-se cotas para negros, índios e outras minorias em concursos públicos. Trato delas na próxima seção.

2019 03 09 O racismo no Brasil

Cotas são mecanismos eficientes?

Sabe aquele seu amigo contra cotas? Responda com ciência! Nada de opinião. Somente econometria de qualidade.

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O artigo da Fernanda Estevan e co-autores (2019), num dos melhores periódicos de economia, mostra que cotas geram redistribuição sem distorção! Esse resultado é importantíssimo para entender a justiça social de cotas.

No mencionado artigo, estuda-se o exemplo da Unicamp, que implementou sua política de ação afirmativa em 2004. Alunos de colégios públicos ganhavam 30 pontos (30% do desvio padrão) a mais e ao se autodeclararem negros, mulatos ou índios, mais 10 pontos. Os autores são inovadores, pois conseguem mostrar uma relação de causalidade entre ações afirmativas e o esforço de alunos universitários.

O primeiro resultado é de que essa política aumentou, e muito, a probabilidade de entrada de alunos de famílias de baixa renda. Mais interessante, a adoção de ações afirmativas não mudou o esforço dos alunos de alta renda, tanto antes do ENEM quando depois da entrada na universidade. Isso provavelmente aconteceu porque a vantagem de ser rico ainda é muito grande, mesmo com cotas. Além disso, alunos ricos e pobres se esforçam bastante para estudar para o ENEM. A introdução de ações afirmativas não mudaria o padrão de estudos. Simplesmente aumentou-se a participação relativa de alunos de baixa renda, sem mudança da qualidade do ensino.

Parte da razão da Unicamp ter adotado essa política é por que estudos como Pedrosa e co-autores (2007) mostram que alunos de escolas públicas se esforçam mais e apresentam bom desempenho em comparação a colegas mais ricos, de colégios privados.

Francis e Tannuri-Pianto (2012) estudam as cotas raciais da Universidade de Brasília. Eles encontram resultados parecidos – não há distorções no esforço dos alunos que estudam para o ENEM, brancos ou negros. Mais interessante, eles debelam um mito importante: as cotas não impactam o desempenho relativo dos alunos negros e brancos, mesmo depois da política aumentar a proporção de negros e pobres na Universidade. Nada de achar que a entrada desses alunos jogou o ensino pra baixo. É mentira! Deve-se salientar ainda que os autores encontram dois resultados bem interessantes: há um número pequeno mas, estatisticamente significativo, de alunos que mentem sobre sua identidade racial mas, em contrapartida, essa mesma atitude inspira outros a assumirem a sua.

Ainda, por mais que cotas tenham trazido maior justiça sem distorções (maior equidade se compararmos alunos que entraram versus aqueles “expulsos” pelas cotas), o efeito global ainda é bastante limitado, como mostram os mesmos autores em outro estudo. Como eles afirmam: a maior parte dos brasileiros, principalmente os mais pobres, não tem qualquer chance de fazer uma universidade pública. As cotas ajudam, mas estão longe de serem tão comuns a ponto de mudarem o sistema deverdade.

Em mais um exemplo do efeito de cotas, Ana Ribeiro (2016) mostra que alunos de Direito que entraram por cotas têm 33% maior chance de passar no exame da OAB que se fizessem uma universidade privada. E, mais importante, nada acontece com a probabilidade dos alunos que perderam sua vaga nas universidades públicas passarem no exame da OAB. Ou seja, cotas realmente aumentam justiça social sem prejudicar muito os que foram deslocados por elas!

Também, os alunos de Direito via cota têm desempenho pior que os outros alunos, 7.68%, mas a diferença de performance nos períodos iniciais é muito maior. Ou seja, os alunos que entram via cota conseguem recuperar bastante a distância inicial que os separa dos outros estudantes. Ainda, Alice Lopes (2015) mostra que uma diferença importante que se mantém mesmo com as cotas é que os alunos mais pobres tendem a se formar em cursos de menor potencial de ganhos financeiros.

Para ficar num exemplo grosseiro, que não reflete a importância relativa de cada profissão, pensem em medicina vs serviço social. Ou seja, alunos de cotas são tão bons quanto os outros, mas acabam entrando menos, relativamente, nas graduações de “elite”.

Infelizmente, a atitude dos brancos precisa mudar. Robert Vidigal (2018) encontra que somente 6% dos alunos brancos da UFSC acha que cotas raciais são importantes na instituição. Para não ficar só no pessimismo: indivíduos brancos que entendem mais de política tendem a expressar maior apoio à existência de cotas, além de ter atitudes raciais mais coerentes.

Para resumir: cotas são um importante mecanismo de justiça social e NÃO PREJUDICAM os alunos que são deslocados por elas (os que entrariam nas universidades no lugar de estudantes negros e de colégios públicos). Alunos que tem diferença grande inicialmente acabam recuperando boa parte dela ao longo do curso. Não conheço nenhum artigo científico que mostra que cotas gerem distorções no sistema de ensino (pode existir, é claro). “Cotistas” não jogam a qualidade do ensino pra baixo. É ciência, não ideologia.

Os resultados são bem consistentes. Cotas são relevantes como mecanismo de acesso, sem causar distorções. Mas resta uma dúvida. Por que preferir cotas raciais a sociais? Afinal, cotas sociais teriam um critério objetivo, renda, enquanto ações afirmativas com critérios étnicos promoveriam a diferença entre brasileiros que deveriam ser iguais perante a lei. Não é bem assim. Mostro isso na última seção.

Cotas raciais versus sociais

No fundo, o argumento de que cotas deveriam ser para pobres, com corte de renda, se alicerça em quatro bases: discriminação contra brancos necessitados, favorecimento contra negros ricos, comportamento anti-ético de caucasianos que se declarariam pretos (ou indígenas, etc.), e análise moral de que não deveríamos diferenciar brasileiros pela cor da pele – as cotas raciais seriam em si racistas. Todos esses argumentos são falhos, alguns grosseiramente (o último, em particular, é usado por racistas, embora não só por eles, para tentar inverter o ônus da prova no processo de estruturação do racismo sistêmico).

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Vamos debelar o primeiro argumento “contra” cotas raciais. Para isso, vamos assumir dois irmãos, um negro e outro branco, igualmente pobres. Se houvesse cota via renda somente, ambos teriam a mesma chance de entrar na universidade via cota. Contudo, os resultados científicos são claros: para as mesmas condições, um negro sempre vai ser discriminado no mercado de trabalho! Já encontramos o trabalho de Francis-Tan na primeira seção e ele mostra isso de forma clara.

Para recordar, ele estudou irmãos de cores diferentes e mostrou que não há muita diferença educacional na adolescência. Mas o que acontece quando esses irmãos, com o mesmo grau de educação e renda familiar, entram no mercado de trabalho? O racismo vem com força. Os irmãos negros passam a conseguir menos empregos formais e, quando conseguem, têm empregos de menor qualificação, tendo dificuldades para continuar estudando.

Se a cota não for racial: O irmão negro dificilmente vai conseguir ter o mesmo salário que um irmão branco. É necessário, então, cotas para discriminar a favor dos negros, sim, para que a entrada dos menos favorecidos seja incentivada. Cotas por estrato de renda são incapazes de lidar com racismo.

Há evidências claras de que cotas sociais não mudam a composição racial dos estudantes de ensino superior. Vieira e Arends-Kuenning (2019) mostram que cortes de renda não resultam em aumento de alunos negros. Isso não é fruto de menor capacidade acadêmica desses alunos, já que os outros estudos mostram que alunos que entram por cotas raciais tem o mesmo desempenho de alunos não-cotistas.

Mas, e o favorecimento dos negros ricos? Infelizmente, no Brasil racista, não há muitos negros ricos para que haja qualquer distorção. Negros são somente 17% dos mais ricos do país

Se esses negros forem tentar vaga por cota, os prejudicados não seriam os brancos! Seriam outros negros que estivessem competindo com os mais ricos pelas vagas para cotistas. Mas isso não acontece. A razão para isso é simples, como mostra Alice Lopes (2015): Negros e brancos não competem nos mesmos cursos! A maioria dos que entram por cota vai para cursos de menor prestígio. Provavelmente os negros mais ricos, se fossem tentar entrar por cota, iriam fazê-lo nos cursos de medicina, engenharia etc.

Ou seja, as cotas conseguiriam manter sua função de aumentar a proporção de negros e pobres sem criar distorções (resultado esse que é consenso na literatura sobre cotas, como vimos na seção anterior)

Por último, e a fraude de brancos se passando por negros? Com certeza, esse é um problema e existe. Mas não é um problema generalizado. Sarah Lemp (2019) mostra como funcionam as comissões que julgam os pedidos de candidatos que se declaram negros.

O artigo tenta abrir a caixa preta dessas comissões. Uma coisa é clara: a existência das comissões limita e muito o número de fraudes. Elas ainda existem, mas são poucas e, portanto, irrelevantes para o sistema como um todo. Também não há tanta discriminação contra brancos pobres. Brancos são menos de 25% dos mais pobres no Brasil. E assim como negros pobres, acabam fazendo vestibular para os cursos menos concorridos. De fato, para brancos pobres cotas podem ser muito boas! Cotas acabam criando uma reserva de mercado para brancos pobres em alguns cursos, já que retira a maior parte dos concorrentes, Os que são prejudicados são uma parcela pequena o suficiente para continuar justificando a existência de cotas raciais.

Por último, toco num ponto que é uma grande dissimulação: “as cotas ampliariam diferenças entre brasileiros; todos somos iguais e raça não existe”. Esse argumento ou é fruto de racismo ou pura ingenuidade. Para quem é negro, raça não só existe, como define muito da sua vida: oportunidades de estudo e trabalho, chances de ser parado pela polícia, ir preso por crimes que não cometeu etc. Alguém dizer que raça não existe num dos países mais desiguais do mundo é um verdadeiro absurdo.

E para quem está preocupado com qualidade do ensino, olhem o resultado de Valente e Berry (2017): “Nossa análise revela que os estudantes que foram admitidos em universidades públicas através de ações afirmativas têm o mesmo desempenho acadêmico de estudantes que não se beneficiam de ações afirmativas, enquanto alunos cotistas em universidades privadas têm um desempenho ligeiramente melhor do que alunos admitidos através de métodos tradicionais.”

Ainda, o mecanismo de cotas pode ser melhorado! Aygun e Inacio Bó (2019) mostram que a competição por vagas de cotistas em alguns cursos pode ser tão alta que a nota de corte para cotistas acaba por ser maior que a de não-cotistas. O artigo deles é bem técnico mas eles mostram como resolver isso. Como os autores afirmam: Você precisa sempre dar a chance de alguém, que tem uma característica associada a uma cota, competir com base em sua nota do ENEM nas vagas reservadas para alguém sem essas características.

Interessante também é McLaughlin (2016), que estudou a percepção dos “cotistas”. Eles afirmam com todas as letras que ações afirmativas ajudaram-lhes a ter uma educação. Mais importante, os pais os incentivaram, pq agora havia uma avenida um pouco menos difícil. E eles acreditam que tais ações ainda são necessárias, principalmente pela falta de diversidade das universidades.

Por último, vale a máxima de Gary Becker, um dos maiores economistas de todos os tempos: mercados tendem a fazer a discriminação desaparecer, mas isso pode demorar séculos para acontecer. Cotas raciais são FUNDAMENTAIS para diminuir uma injustiça histórica.

Argumentos contra elas não se sustentam. A ideia de que somos todos iguais é muito bonitinha no mundo platônico, mas o setor público deve sim implementar cotas raciais em todos os níveis que isso fizer sentido. Talvez, um dia, possamos retirá-las. Mas vai demorar. O Brasil é muito desigual e as políticas de cotas raciais tornam o país um pouco menos injusto.