O Brasil é o país mais fechado do mundo ao comércio internacional, o que não deveria surpreender ninguém que se depara com os preços de produtos importados e a falta de produtividade das empresas brasileiras, muitas delas sem acesso às cadeias globais de produção. Já escrevi sobre isso no Valor Econômico, mas aqui quero ir mais a fundo. Existe um lado bom em termos uma economia fechada, contudo. São muitos os ganhos potenciais a serem apropriados em acordos de comércio multilaterais, se sairmos do nosso marasmo para encarar negociações sérias e diminuir o gigantesco protecionismo às empresas locais. Nesse post quero começar a desmistificar alguns argumentos sobre comércio e como podemos criar ganhos para toda a economia se abrirmos, mesmo que medianamente, a nossa economia.
Otaviano Canuto, Conselheiro sênior do Departamento de Desenvolvimento Econômico do Banco Mundial, escreveu muito bem sobre os novos acordos comerciais no mundo. Perdemos o barco da Parceria Trans-Pacífico (Trans-Pacific Partnership – TPP) e mesmo o Mercosul é uma piada perto do que a região pretendia com essa área de comércio na década de 90.
Para reforçar o argumento de que o Brasil é o país mais fechado do mundo, podemos pegar os dados da câmara de comércio internacional (ICC) e olhar como o país se comporta em relação aos outros países do G20. O ICC publica um índice de abertura econômica e nele vemos que o Brasil está em último lugar entre seus pares, mesmo considerando países também fechados como Índia, Indonésia, China e até a Argentina, que limita importações porque há anos enfrenta problemas cambiais severos.
Ranking dos Países do G20 – Abertura de Mercado, 2014.
Fonte: ICC, 2014.
Destrinchando a tabela acima vemos que o Brasil vai mal em todos os quesitos, sendo especialmente ruim em relação a abertura comercial e políticas de comércio, mas não muito melhor em relação a abertura a investimentos diretos estrangeiros (IED) e infraestrutura para o comércio internacional. O escore final não deixa dúvidas, com o Brasil estando bem abaixo de todos os países, desenvolvidos ou não, ricos ou pobres. Resta a dúvida: porque não buscar ganhos de comércio, em vez de manter políticas protecionistas que datam de meados do século passado? Para entender o problema, precisamos primeiro desmistificar o processo de abertura comercial para compreender o real efeito de acordos comerciais sobre a economia como um todo e os diferentes agentes econômicos em particular.
Os ganhos de comércio podem ser divididos em dois tipos, os derivados de vantagens comparativas e os resultantes de economias de escala (internas e externas) e comércio intra-indústria. Uma introdução ao tema pode ser vista aqui e aqui. O que é importante notar é que o assunto não é controverso. Sabemos exatamente como medir os efeitos de abertura comercial e os efeitos sobre as economias locais. Para entender como os mitos surgem precisamos dividir os efeitos de uma abertura comercial sobre os agentes locais, alguns desses interessados em perpetuar os mitos sobre o livre comércio. Os efeitos de uma abertura comercial sobre os agentes econômicos locais são:
1 – Os consumidores ganham.
Esse é o efeito que é fácil de entender. Mais competição gera maior variedade e menores preços. Com a diminuição das tarifas os produtos importados ficam mais baratos, com maior acesso da população a esses produtos, sem contar a diminuição dos custos das empresas que utilizam insumos importados. Restringir o comércio é limitar as escolhas dos consumidores e tutelar o que podemos comprar – resultando na nossa “maravilhosa” tradição de ter pessoas com elevado padrão de renda indo a Miami comprar enxovais de bebê e se desesperando ao comprar toneladas de roupas em Nova York.
2 – Existe uma rearranjo alocativo, com indústrias locais “importadoras” perdendo e as “exportadoras” ganhando.
Abertura comercial gera especialização. Isso significa rearranjo dos fatores de produção, outra forma de dizer que algumas indústrias perdem e outras ganham. E esse efeito é uma das grandes fontes de conflito, pois as indústrias que perdem com o comércio incentivam politicamente o protecionismo, com o argumento de que o livre comércio destrói empregos dessas indústrias. Contudo, outras indústrias ganham com o comércio, com mais empregos e eficiência produtiva.
3 – Cresce a especialização dentro da indústria.
Uma das fontes de ganhos de abertura está no comércio intra-industrial, que significa o aproveitamento de economias de escala para especialização em determinados produtos dentro de cada setor. Um exemplo simples é o da indústria automobilística. Antes da abertura comercial as empresas brasileiras tinham que produzir todo tipo de carro (vamos imaginar que sejam três tipos, carros pequenos, médios e grandes). Após a abertura a indústria nacional se especializou em carros pequenos (1.0) e alguns tipos de carros médios, importando os outros tipos ou integrando a produção nacional às cadeias globais de valor, com partes do processo produtivo no Brasil. O resultado? As exportações E importações de carros explodiram, gerando maior variedade e acabando com a fama de carroça dos carros brasileiros. O mesmo aconteceria em várias outras indústrias com a abertura comercial – elas não desapareceriam, mas se especializariam em determinados produtos, exportando mais, enquanto o país importaria a variedade não produzida localmente. Os preços tenderiam a cair não somente por causa da diminuição das tarifas, mas também pela eficiência e economias de escala. O problema é que eliminar tarifas causa perdas para poucos Eliminating a barrier causes large loss for a (vocal) few and small benefits for everyone.
4 – O governo perde arrecadação.
Tarifas aduaneiras são fontes de receita do governo. No fundo, são uma taxação sobre os consumidores de produtos importados (indivíduos e empresas que os usam como insumos) em favor das empresas locais, sendo que as mais eficientes recebem menos e as ineficientes mais (ambos de forma indireta). No Brasil as receitas aduaneiras são pequenas como proporção do PIB e não representam significativa perda de arrecadação se o país assinar acordos internacionais de livre comércio.
5 – A sociedade como um todo ganha.
Bem-estar social pode ser medido de várias formas. Uma é agregar os efeitos sobre todos os agentes econômicos para mensurar o efeito sobre a sociedade. No presente caso, seria somar os efeitos sobre consumidores, empresas locais e o governo. É fácil mostrar (sugiro o capítulo 9 do livro de Krugman e Obstfeld) que para países pequenos e grandes o protecionismo gera o que os economistas chamam de deadweight loss, ou perda de eficiência alocativa. A razão é simples – quando um país como o Brasil se fecha para o comércio a indústria local tem que produzir a maioria dos produtos consumidos localmente, mesmo quando essa produção é ineficiente. É só pegarmos os exemplos dos computadores – durante anos tivemos a maldita Lei da Informática, cujo objetivo era criar uma indústria nacional de computadores. Durante todo o tempo de vigência da lei os computadores eram caríssimos no Brasil e a produção local risível de tão ruim. Ainda hoje mantemos elevadas tarifas para a importação de todo o tipo de produtos de alta tecnologia. O resultado é a existência de uma indústria local ruim, ineficiente, e custos de produção elevados para todo o resto da sociedade, já que esses produtos são fundamentais para diversos processos produtivos. No final não saímos do país somente para comprar enxovais, mas também os últimos produtos de informática e telefonia, que são estupidamente caros no Brasil. Abrir a economia diminuiria rapidamente parte do custo Brasil, que impede a competitividade da maioria das empresas brasileiras. Em qualquer modelo de comércio internacional a especialização traz ganhos para a sociedade, seja ela pequena ou grande, pobre ou rica. Especialização gera eficiência.
6 – Existem argumentos racionais para o protecionismo.
Livre comércio puro é uma fantasia. Nenhum país o pratica e nem o praticará no futuro próximo. Nenhum acordo multilateral de livre comércio chega ao ponto de estabelecer uma zona completa de exclusão tarifária. Os argumentos para o protecionismo são baseados em falhas de mercado e/ou existência de economias externas de escala. Assim, teríamos que:
- Indústrias nascentes precisam de proteção para amadurecer (base da políticas de substituição de importação que vigorou dos anos 50 até início dos 90).
- Algumas indústrias se beneficiariam de economias externas de escala se forem protegidas.
- Em alguns setores os riscos de investimento são muito grandes e o governo deve ajudar (argumento para criar Petrobras, Vale etc).
- E a existência de mercados financeiros incompletos leva à necessidade de proteger a indústria local.
Alguns desses argumentos fazem sentido em determinadas períodos do desenvolvimento industrial de um país. No Brasil, muitos deles já se perderam no tempo, mas ainda formam a base da nossa atual e completamente ultrapassada política comercial. Nos próximos posts vamos discutir como montar uma política comercial racional que combine abertura comercial com ganhos dinâmicos para a economia – inclusive discutindo os custos e benefícios de subsídios diretos em vez de restrições comerciais. De qualquer maneira, a existência de algumas dessas falhas de mercado no Brasil significa que em nenhum momento vou prescrever como política comercial uma abertura total e irrestrita.
7 – Abertura comercial afeta a distribuição de renda.
Não há dúvidas de que abertura comercial afeta a distribuição de renda de um país. Mas aí está um dos potenciais ganhos para a sociedade brasileira – o livre comércio tende a privilegiar os setores abundantes em determinados fatores de produção em detrimento daqueles que utilizam fatores escassos. Normalmente dividimos os fatores de produção em quatro tipos – mão de obra qualificada, pouco qualificada, capital e recursos naturais. No Brasil claramente ainda temos uma economia abundante, relativamente, em recursos naturais e trabalho pouco qualificado. Maior abertura comercial elevaria a produção desses setores em detrimento de outros, menos abundantes em mão-de-obra qualificada. Ou seja, a renda dos trabalhadores menos qualificados no Brasil aumentaria relativamente a dos outros trabalhadores, diminuindo a desigualdade de renda.
Uma forma de ver isso é o impacto do protecionismo sobre a formação das grandes metrópoles brasileiras em meados do século passado. Com a política de substituição de importações, o resultado foi um aumento relativo dos salários dos trabalhadores qualificados em relação ao dos pouco qualificados. As indústrias se formaram nos bolsões de mão de obra semiqualificada e qualificada, atraindo migrantes do Brasil inteiro à procura dos maiores salários vigentes nas indústrias protegidas (e no incipiente setor de serviços que apoiava o crescimento industrial). Estamos pagando o preço disso até hoje, que começou com a aglomeração inicial dessa migração nas periferias e favelas nas grandes cidades. Precisamos melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores pouco qualificados e uma das formas de fazer isso, por mais paradoxal que possa parecer, é através da abertura comercial.
Nos próximos posts vamos entrar nos mitos sobre o livre comércio (que nunca vai ser de livre de fato) e como podemos começar uma política comercial mais racional que a atual, que torna o Brasil um dos países mais atrasados e fechados do mundo.