Pela primeira vez na história do Brasil há uma discussão sobre o aborto, resultado da epidemia de microcefalia causada pelo avanço do vírus zika. Como bem observou Drauzio Varella, o aborto já é permitido no Brasil, mas somente para as classes mais abastadas. Ou seja, mais um reflexo de um dos países mais desiguais do mundo, que continua a punir as classes de menor renda, seja em acesso à saúde, educação, ou mesmo, como no presente caso, direitos reprodutivos.
Um dos tabus sobre o assunto é a discussão sobre as experiências individuais sobre casos de aborto. No meu caso, já presenciei, como espectador e participante, a realidade de como funciona o aborto no Brasil. No passado, duas das minhas companheiras tomaram a decisão de abortar. Ambos os casos aconteceram há mais de dez anos, mas ainda refletem a realidade brasileira. Em um dos casos não fiquei sabendo até meses depois do acontecido, mas no segundo auxiliei minha namorada, ao acompanhá-la durante o procedimento. A realidade é simples: se há condições financeiras a decisão de abortar, para a classe média alta, significa marcar uma data e horário e realizar o procedimento em boas condições, em uma clínica que nada fica a dever às boas instalações médicas de grandes centros urbanos. Não é uma decisão fácil e há dificuldade em se conseguir informações sobre locais de clínicas que realizam abortos em centros urbanos, mas ambos os obstáculos são contornáveis, ou ao menos eram há mais de dez anos.
O mais importante, para a definição de políticas públicas, é que existe claramente uma correlação entre a existência de direitos reprodutivos e o desenvolvimento econômico. Ou seja, a liberdade de escolha de se formar ou não uma família por parte dos indivíduos, incluindo-se o direito ao aborto, é mais pronunciada em países mais ricos. O gráfico abaixo não deixa qualquer dúvida, existe uma forte correlação positiva (0.8) entre uma medida de legitimação de gêneros definida pelas Nações Unidas (GEM – gender empowerement measure) e renda per capita.
A figura original foi publicada em um excelente artigo de Doepke, Tertilt e Voenna, publicado em 2012, que trata de forma sistemática e científica de alguns dos pontos que levanto nesse post.
Mas a pergunta mais importante é: existe relação de causalidade entre direitos reprodutivos, políticos e trabalho feminino; e desenvolvimento econômico? A resposta, inequivocamente, em qualquer dimensão de análise, é sim. Alguns exemplos:
1 – o mais famoso é o capítulo 4 do livro Freakonomics, no qual os autores concluem a permissão do aborto em todos os EUA, na década de 70, ajuda a explicar parte da significativa redução da criminalidade no país a partir da década de 90. Há controvérsia sobre o assunto, mas alguns resultados são inequívocos, como o fato de que o acesso a direitos reprodutivos, como aborto e contraceptivos, resulta em maior qualidade de vida para mulheres, como mostrou Pezzini (2005).
2 – A simples existência de mais oportunidades de trabalho para mulheres pode afetar o desenvolvimento de gerações futuras. Atkin (2011) comparou a altura de crianças de vilas no México, com uma diferença: em algumas vilas foram abertas maquiladoras (indústrias de montage de produtos de baixo custo) e em outras não. As crianças de mulheres que tinham a opção de trabalhar em maquiladoras em suas vilas eram muito mais altas e saudáveis do que crianças em outras vilas. Esse efeito é tão grande que acaba com a diferença de altura entre crianças pobres no México e a média de altura de crianças nos Estados Unidos. Tsani e outros (2013) mostraram, ainda, como a redução de barreiras ao trabalho feminino traz grande contribuição ao crescimento econômico em países menos desenvolvidos. O livro de Banerjee e Duflo, Poor Economics, é recheado de exemplos nos quais a legitimação (empowerement) de direitos de gênero geram benefícios sociais e ajudam a redução da pobreza.
3 – Maiores direitos de propriedade por parte de mulheres levam a maior desenvolvimento econômico. Fernández (2014) estabelece uma relação de causalidade entre o desenvolvimento dos direitos de propriedade, como ter a posse legal de imóveis, cobrar aluguéis, trabalhar, estabelecer contratos, processar indivíduos e empresas, divorciar-se e manter parte dos bens, além de poder manter a custódia dos filhos, e o crescimento econômico dos países nos últimos 200 anos. É bom lembrar que no Brasil a Lei do Divórcio é do final da década de 1970 e mesmo durante boa parte dos anos 1980, se a mulher “abandonasse o lar”, independente da razão, perderia direito à parte da sua propriedade.
No final das contas existem argumentos econômicos importantes para a luta por igualdade de gêneros (aqui trato de dois gêneros somente por simplicidade, mas o argumento é extensivo a todas às outras categorias de sexualidade e identidade). Infelizmente, muitas vezes pensamos que o desenvolvimento econômico e a modernidade, por si só, vêm acompanhadas de medidas importantes de igualdade de gênero, como o divórcio nos anos 1970 no Brasil ou, mais recentemente, a oportunidade de casamento para pessoas do mesmo gênero. Na realidade, independente da existência de impacto econômico importante a ser alcançado por políticas de igualdade de gêneros, concordo com Duflo (2012), que argumenta que um compromisso político contínuo por essas políticas é necessário em si mesmo. É importante que a discussão sobre o aborto venha à tona no Brasil. Políticas de igualdade geram desenvolvimento econômico, além de aliviar a desigualdade de acesso a direitos reprodutivos fundamentais para melhor a qualidade de vida de grande parcela da população. Mas argumentos econômicos tem limite. É simplesmente uma questão de justiça e igualdade.