A constituição brasileira é clara: saúde e educação são direitos universais e, portanto, função do Estado brasileiro. Só esquecemos de definir, para esses direitos, quem paga, como seriam entregues esses direitos e como mediríamos a satisfação e benefício para as pessoas. Há um consenso de que, no mundo, os sistemas educacionais estão abaixo da fronteira de possibilidade de combinação de equidade e eficiência, como na figura abaixo, adaptada de Psacharopoulos (2014). Se assumirmos que há um trade-off entre equidade e eficiência, isso ainda assim não explica como os sistemas educacionais mundiais em geral, e Brasil em particular, estejam tão abaixo do seu potencial.
A boa notícia é que podemos conseguir mais equidade ou eficiência sem precisar escolher entre um ou outro. É a única vantagem de ter um sistema deficiente: há como melhorar a eficiência sem perder equidade e vice-versa.
E foi exatamente uma busca de maior equidade que levou à criação, em 1997, do programa universal de acesso à creche em Quebec, no Canadá. Esse programa subsidia a oferta de vagas em creches na província canadense, a um custo, ainda hoje, de cinco dólares canadenses por dia. A universalização se deu por etapas, com crianças de 4 anos em 1997, de 3 anos em 1998, 2 anos em 1999 e o complemento do processo com crianças de 0 a 2 anos em 2000. O programa também aumentou significativamente o salário dos educadores para essas faixas etárias e introduziu regulação sobre a qualificação desses educadores e das creches, para garantir aumento da qualidade de atenção.
À primeira vista, esse é o tipo de programa adorado no Brasil, onde gostamos que o Estado seja o grande provedor e que deveria gerar imenso impacto sócio-econômico, com liberdade para que os pais participassem do mercado de trabalho, aumento na sociabilidade das crianças, e melhora nos indicadores educacionais. Contudo, os resultados ficaram muito aquém dos previstos, a ponto de se estabelecer uma grande briga política pelo programa. É óbvio que o programa se revelou muito popular, pois sempre que o Estado subsidia indivíduos, os recipientes apresentam elevado apreço pela política que os beneficiam. Como os custos são divididos com toda a sociedade, há pouco incentivo para que as pessoas que não se beneficiam briguem contra o programa. Contudo, vários estudos apontaram para um resultado estarrecedor: o desempenho das crianças, após a instalação da política de creche universal, piorou. Um exemplo é o trabalho de Baker, Gruber & Milligan (2008), que mostrou que: com o subsídio tanto a entrada no mercado de trabalho por parte das mães quanto o uso do subsídio aumentaram significativamente; mas houve redução no desenvolvimento de habilidades não-cognitivas (comportamentais) das crianças deixadas em creche, sem aumento nas suas habilidades cognitivas. Esses resultados foram corroborados por Kottelenberg and Lehrer (2013), que também demonstram que as funções utilidades de pais e filhos são diferentes e provavelmente por isso o resultado de menor eficiência do gasto público.
Esse último resultado é particularmente importante, pois revela uma grande falha da nossa maneira de ver o mundo: assumimos que os pais sempre querem o melhor para os filhos, mas isso não é necessariamente verdade. O programa de universalização de acesso à creche em Quebec mostra isso, já que uma das explicações para o desempenho ruim das crianças é o fato de que as mães trocaram atenção a seus filhos pelo cuidado de terceiros, que, nesse caso, se revelaram menos importantes, no agregado, para o desenvolvimento das crianças.
A literatura sobre desemprenho infantil é extensa e mostra vários resultados contraintuitivos. Contudo, um resultado é muito robusto: quanto mais atenção uma criança recebe, maior sua capacidade cognitiva. Com a liberdade de deixar a criança em creches, que não são responsáveis por uma atenção individual, muitos pais passaram a dar menos atenção aos seus filhos e, portanto, o resultado agregado foi o de queda no desenvolvimento infantil.
Os resultados desses estudos criou um gigantesco embate político em Quebec, já que a universalização dos subsídios é uma política muito popular entre os eleitores da província. Um senador já falecido, Fraser Mustard, chamou o trabalho de Baker, Gruber & Milligan (2008) de cocô de galinha (chicken poop) em um debate no Senado, enquanto o chefe de políticas de saúde da Universidade de British Columbia e grande defensor da melhora da educação infantil, o também já falecido Clyde Hertzman, acusou os autores de serem zumbis cometendo crimes estatísticos. A reação política foi forte porque os políticos encontraram, nos trabalhos acadêmicos, fatos que não se coadunavam com as políticas públicas então ensejadas. Contudo, de forma alguma os autores viam, em seus resultados, razões para abandonar por completo políticas de subsídios à educação infantil. Eles simplesmente mostraram que a política de universalização de acesso a creche é ineficiente, mesmo que promova a equidade.
Para melhorar o desenho do programa, o primeiro passo é entender onde estão as ineficiências e onde o programa acerta. Steven Lehrer, meu colega na NYU Shanghai, tem estudado esse programa há mais de dez anos, e mostrou recentemente que se formos a fundo nos dados, podemos entender onde esse programa aumenta o resultado para pais e filhos. O seu argumento é o de que as habilidades de crianças podem ser afetadas de três grandes formas, no contexto do programa: tempo investido pelos pais; tempo e dinheiro investido em educação (no caso, creches); e investimentos em outros bens e serviços. Na verdade, podemos dividir o conjunto de crianças afetadas pelos programas em dois: as crianças que apresentaram piora nos seus indicadores cognitivos e não-cognitivos; e aqueles que tiveram aumento de desempenho. Os resultados do seu artigo mais recente são muito interessantes. Ele mostra que:
1 – Crianças em ambientes familiares com um só parente (normalmente, mães solteiras) se beneficiam do programa de universalização de acesso à creche no Quebec;
2 – A maior parte dos resultados negativos é devido a crianças de baixas habilidades em ambientes familiares com os dois pais presentes.
O mais interessante é que esses resultados são robustos independentemente da origem dos pais (imigrantes vs. não imigrantes; maior escolaridade vs. menor escolaridade, etc). Enquanto uma criança, se pudesse escolher, otimizaria sua função utilidade através de mais atenção dos pais, isso não é necessariamente verdade para os pais, cuja atenção para os filhos enfrenta um gigantesco custo de oportunidade no tempo que não é alocado para gerar renda, lazer, cuidar de outros filhos, etc. Os resultados indicam que os pais, no segundo cenário, estão usando as creches como substitutas à atenção das crianças dentro de casa, usando o tempo ganho para atividades fora do ambiente familiar. O pior é que os resultados negativos são persistentes e acompanham as crianças durante toda a fase escolar, como demostram Baker, Gruber & Milligan (2015). Nesse trabalho recente, os autores acompanham as crianças que tiveram acesso universal a creche e constatam que, na média, isso resultou em piora na saúde, menor satisfação em relação a vida, e aumento na incidência de crimes (nesse caso, concentrado nos adolescentes do sexo masculino). Não parece haver dúvidas de que o acesso universal a creches resultou numa piora do desenvolvimento de habilidades para o sucesso na vida, tanto para meninos quanto meninas, embora tenha ajudado um pequeno grupo.
É claro que ainda existe muita coisa que não sabemos sobre o desenvolvimento infantil e sua relação com atenção dos pais e políticas públicas. Contudo, os resultados dos trabalhos sobre o programa de universalização de acesso à creche de Quebec mostram que políticas de acesso parcial, direcionadas aos públicos alvos corretos, por exemplo, pais e mães solteiros, seria muito mais eficiente do que a simples universalização, que no agregado, resultou em menor desenvolvimento nas crianças de Quebec, no Canadá, resultado que persiste ao longo da vida dessas crianças.
Mas o meu projeto aqui não é resolver os problemas de países ricos como o Canadá, e sim trazer evidências que possam servir ao caso brasileiro. Mais evidências científicas e o começo de desenho de políticas públicas no Brasil no próximo post.