O post original sobre as razões pelas altíssimas taxas de juros no Brasil é o mais acessado na minha página. Por isso, vou usar parte da minha pesquisa recente para atualizar as informações do artigo original – uma versão em inglês foi publicada na Americas Quarterly. Dei uma longa entrevista ao Globo sobre o assunto, que toca nesse e em outros assuntos sobre regulação do sistema financeiro.

Existe uma clara relação entre desenvolvimento do sistema financeiro, com boas condições de crédito, e bem-estar social. No Brasil, contudo, ainda vivemos uma situação em que tanto consumidores quanto a maioria das empresas pagam um custo absurdo por empréstimos, com uma exceção, os créditos subsidiados (educacional e imobiliário no caso das famílias e via BNDES no caso das empresas). É fundamental que as taxas de juros cheguem a níveis razoáveis para destravar o crescimento e criação de mais pequenas empresas, além de permitir planejamento de longo prazo para todos os agentes econômicos, inclusive as famílias brasileiras.[1]

As taxas de juros no Brasil são as segundas maiores do mundo, perdendo somente para Madagascar, e mais do que o dobro do terceiro colocado, Malawi.  E não existe um só culpado – o Banco Central, normas jurídicas, Tesouro Nacional e o comportamento dos bancos comerciais são responsáveis por uma situação peculiar: o único país de renda média com juros estratosféricos.

Ranking País Taxa de Juros Real
1 Madagascar 47.8%
2 Brasil 41.6%
3 Tajiquistão 24.4%
4 Uganda 19.7%
5 Quirguistão 19.3%
16 Peru 12.4%
17 Paraguai 12.2%

Tabela – Ranking dos países por taxa de juros real, 2017. Fonte: Banco Mundial.

A tabela acima mostra a taxa de juros real, descontada a inflação, de alguns dos países com maiores juros reais. Na América Latina, o Peru e o Paraguai só aparecem na lista de maiores juros do mundo na 16o e 17o posições, com juros que são menores que um terço dos brasileiros. É importante notar que estou extrapolando uma análise baseada em taxas que não são exatamente comparáveis, porque os termos e condições dos empréstimos podem variar, entre os países. Ainda assim, a nossa percepção de que no Brasil os juros são absurdos parece ser corroborada quando comparamos o Brasil com o resto do mundo.

Dois dados podem mostrar como o Brasil é um outlier, uma exceção ruim: o primeiro é a taxa de juros paga pelos devedores privados (normalmente aqui não entram as gigantescas taxas de cartões de crédito ou do cheque especial) e o segundo, o spread entre os juros pagos pelos agentes privados e os da dívida pública (geralmente, os títulos considerados sem risco dentro da economia nacional). Em ambos os casos, o Brasil é o país  com maior juros do mundo. O mapa mundial com os dados da taxa de juros dos devedores privados mostra que somente a Argentina tem juros no mesmo nível brasileiro e, mesmo assim, nossos hermanos tem uma taxa de juros bem mais baixa, 31%, contra 52% no Brasil.

Lending rate per country - not map
Taxa de juros de empréstimo bancário para o setor privado. Fonte: Banco Mundial.

Os juros altos, no Brasil, podem ser explicados por restrições de oferta, causadas por um Banco Central excessivamente preocupado com segurança e um comportamento conservador e possivelmente colusivo dos bancos comerciais. Um equilíbrio onde inovação e eficiência são deixadas de lado para manter um sistema financeiro estável e robusto – e estático.

Os spreads brasileiros são 16% maiores, em termos reais, que os da Itália e incomparáveis com os baixos spreads em outros países desenvolvidos. Obviamente, os agentes brasileiros, no agregado, são pouco endividados. Embora hoje a relação entre total de crédito e PIB esteja na média da América Latina, quase todo o crescimento do crédito no século XXI veio de créditos subsidiados. O que é um resultado óbvio, já que temos uma das maiores taxas de juros do mundo, mas não explica a grande questão, que é: porque as taxas aqui são tão altas?

As razões dos juros estratosféricos no Brasil.

Os juros são altos no Brasil por causa de uma combinação de decisões do Banco Central, direcionamento de crédito, comportamento colusivo dos bancos, ineficiência jurídica e escolhas sociais.

Em relação ao Banco Central, desde a crise bancária dos anos 90 a principal preocupação da instituição é com a solidez do sistema bancário. E quanto digo solidez, eu realmente quero dizer solidez – o Banco Central regula de forma ferrenha o sistema financeiro para não deixar que qualquer início de crise se espalhe pelo sistema. É por isso que a crise financeira de 2008 não contaminou o sistema financeiro local e porque, diferente de outros lugares do mundo, como Itália e Grécia, não precisamos nem pensar em reativar algo como o PROER ou mecanismos de socorro aos bancos. O sistema bancário brasileiro é sólido e está preparado para sobreviver a muitas crises, inclusive o aumento brutal da inadimplência causado pela recente crise econômica. Mas isso tem um imenso custo social: os bancos comerciais tem muito pouco poder discricionário sobre a principal fonte de recursos para empréstimos, os depósitos à vista. Em qualquer aula de macroeconomia se aprende sobre o multiplicador monetário, que é o processo pelo qual os bancos comerciais criam crédito (e moeda) em uma economia: os bancos usam o dinheiro dos depositantes para emprestar a empresas e consumidores. Esse dinheiro volta ao sistema financeiro, que torna a emprestá-lo, em um ciclo no qual o depósito inicial se multiplica na economia. Para que os bancos não se alavanquem muito e possam quebrar, iniciando uma crise financeira, em qualquer país há mecanismos que resguardam o sistema financeiro, principalmente através do recolhimento de reservas compulsórias. Nesse caso, um banco não pode emprestar todos os recursos dos depósitos à vista, recolhendo parte desses recursos junto ao Banco Central, sem serem remunerados. No mundo, a média das reservas compulsórias fica abaixo de 10%, enquanto no Brasil esse total é de 25% dos depósitos à vista. Qualquer deficiência diária deve ser paga ao Banco Central com uma taxa de juros iguais à SELIC mais 4% ao ano. Nos recursos à prazo, as reservas compulsórias são de 33%. Ou seja, no Brasil cobramos muito mais reservas dos bancos para recursos à prazo do que no mundo, para recursos à vista! O resultado é um sistema super sólido, mas que limita os recursos a serem emprestados, encarecendo-os. Podemos ver a distribuição dos depósitos compulsórios no mundo na figura abaixo.

Compulsorio
Depósitos compulsórios no mundo, 2018. Fonte: Central Bank News.

Além disso, no Brasil escolhemos direcionar grande parte dos recursos dos bancos para subsidiar diversos tipos de consumidores. Por exemplo, 65% dos recursos da poupança são alocados a empréstimos imobiliários, sendo 80% desse montante nas regras do SFH e os outros 20% a taxas de mercado. Essas distorções fazem, por exemplo, que muitas vezes bancos comerciais aloquem quase automaticamente recursos de depósitos à vista como à prazo, pagando aos correntistas uma remuneração por isso. Ou seja, o nível de distorção é de tal monta que os bancos comerciais voluntariamente pagam aos correntistas que mantém elevados montantes em depósitos à vista, para diminuir o montante de reservas obrigatórias.

O mercado bancário não é somente muito concentrado, mas tem ficado cada vez mais concentrado ao longo dos anos. Concentração em si só não é ruim, mas se levar à oligopolização e, portanto, colusão entre os agentes,  aumenta preços e diminui a eficiência da competição. No caso do setor bancário, contudo, somente a concentração não explica o comportamento colusivo e, portanto, os altos preços cobrados pelos bancos. Podemos ver que os cinco maiores bancos concentram mais de 80% dos ativos bancários no país, participação que quase dobrou desde o início do século.

Concentracao Bancaria
Cinco maiores bancos comerciais – % dos ativos totais do sistema. Fonte: Banco Mundial.

É também relevante saber se o mercado é contestável, ou seja, se há possibilidade de entrada de novos concorrentes, para determinar o grau de eficiência do setor. No caso brasileiro, o mercado é concentrado e a entrada basicamente impossível, pois a regulação é de tal forma a prover segurança acima de tudo que diminui a competição e eleva a taxa de juros para todos os agentes econômicos, tanto públicos como privados. Os bancos comerciais brasileiros se aproveitam da falta de contestabilidade do mercado para extrair dos consumidores um dos maiores spreads do mundo.

Sobre as escolhas sociais, no Brasil temos um tratamento completamente diferente, para os devedores, do que no resto do mundo. A legislação não permita a criação de um cadastro negativo permanente, e as punições aos devedores (como o nome no SPC, por exemplo) são extremamente brandas. Mesmo a criação de um cadastro positivo, com histórico de bom pagador, ainda não vingou no Brasil, embora haja uma reforma em curso. Com isso, os bancos não conseguem diferenciar, temporalmente, os prospectos de potenciais bons e maus pagadores. Os riscos são maiores e, assim, a taxa de juros sobe para todos. Como exemplo de outro arranjo institucional, nos EUA, um país extremamente puritano, o escore de crédito acompanha o indivíduo durante toda a sua vida e, portanto, um histórico de pagamentos em dia leva a menor taxa de juros, enquanto calotes (especialmente sucessivos) encarecem o crédito dos indivíduos por toda a sua vida. Isso limita o risco moral dos consumidores, ou seja, o incentivo ao calote pela baixa punição a ele. Claro que o sistema americano também tem suas deficiências, punindo por tempo demais problemas que podem ser temporários, mas os juros são muito menores que os brasileiros também porque, diferente daqui, um calote acompanha o indivíduo por muito mais tempo. Há outros fatores de escolhas sociais que são diferentes no Brasil, como a inviolabilidade do bem de família, que não pode ser penhorado. Por último, a ineficiência jurídica, em termos de tempo, insegurança jurídica e visão favorável aos consumidores limitam a cobrança de dívidas bancárias, encarecendo, previamente, o preço (juros) das mesmas.

O resultado dessa excessiva proteção aos devedores e insegurança jurídica é desastroso. Como podemos ver abaixo, o Brasil está na pior categoria em termos de força do direito de recuperação por parte dos emprestadores (o índice é uma das categorias do relatório de Doing Business do Banco Mundial).

# Credit strength
Força do direito de recuperação de crédito. Fonte: Banco Mundial.

Ou seja, como os bancos somente dispõe de poucos recursos livres para empréstimos, tem proteção regulatória contra a concorrência, não podem discriminar pessoas através de escores de crédito de longo prazo (risco moral), e não conseguem recuperar parte significativa da inadimplência, os valores a serem emprestados se tornam muito caros. As absurdas taxas de juros no Brasil são, então, resultados da combinação de todos esses fatores. Por um lado, temos um sistema financeiro seguro, mas por outro lado, pouco inovador e muito caro. A maior prova desse equilíbrio ruim para todos está no fato de que os bancos brasileiros não são muito mais lucrativos do que no resto do mundo. Embora sejam comuns as notícias de que os lucros dos bancos brasileiros bateram recordes, na verdade os bancos não estão distantes da média mundial. As figuras abaixo apresentam os retornos dos bancos comerciais em relação aos ativos totais e patrimônio líquido. Nossos bancos não são os mais lucrativos do mundo.

# Bank Return on Equity After Tax
Retorno sobre o patrimônio líquido (após impostos) dos bancos comerciais. Fonte: Banco Mundial.
# Bank Return On Assets After Tax
Retorno sobre ativos totais (após impostos) dos bancos comerciais. Fonte: Banco Mundial.

Precisamos abaixar os juros para aumentar a oferta de crédito, principalmente para as pequenas e médias empresas. Analisando os custos e benefícios do desenho institucional brasileiro, podemos sim ter juros bem mais baixos, mas isso não viria de graça.

Reforma Bancária e Juros no Brasil.

Alguns pontos precisam ser modificados para que os juros caiam e essa é a ordem que deveria ser seguida, para garantir que o comportamento colusivo das empresas não limite a queda dos juros:

1 – Abertura à maior competição bancária. Isso não significa abertura à existência de muito mais bancos comerciais, embora isso possa acontecer. Precisamos impedir maior concentração e, principalmente, liberar inovação (via fintechs, por exemplo). O Banco Central precisa deixar de ser tão conservador. Afinal, nossa concentração bancária limita inovação e reduz incentivos à competição entre, principalmente, os grandes bancos.

2 – Diminuir consideralvemnte o crédito direcionado. Precisamos querer proteger tudo e todos direcionando crédito para os mais diversos setores. Existe alguma justificativa para crédito para agricultura e casa própria. Mas temos que acabar com penduricalhos e, principalmente, diminuir o compulsório sobre reservas. Precisamos liberar empréstimos. Isso não vai nos deixar abertos à crise. Somos seguros em excesso. O índice de liquidez dos bancos brasileiros é de mais de 220%, um absurdo. Não deveria ser mais de 100%.

3 – Mudanças legais sobre os consumidores: precisamos aumentar as punições aos devedores e criar mecanismos de cadastro positivo para que as taxas de juros possam cair fortemente para as empresas e consumidores que são “responsáveis”. Precisamos limitar o risco moral associado ao tratamento brando para os devedores. O novo cadastro positivo pode ajudar nesse ponto.

4 – Marco regulatório sobre relações de consumo bancário. Todos os agentes econômicos estão sujeitos à ineficiência jurídica no Brasil, mas quanto maiores as garantias de resoluções rápidas e estáveis sobre as relações entre consumidores e bancos comerciais, menor a taxa de juros. Um exemplo está no empréstimo para compra de automóveis. Como a garantia do empréstimo é o próprio veículo e a retomada do mesmo é conseguida de forma rápida, com muito mais empresas disputando esse mercado (já que cada montadora tem um braço financeiro para isso), os juros são muito menores do que a média dos outros empréstimos e temos, diferentemente das outras modalidades de empréstimo a famílias ou pequenas empresas, um mercado competitivo com taxas razoáveis.

O Banco Central brasileiro é extremamente competente em garantir a segurança do sistema financeiro brasileiro. Contudo, exagera na busca de segurança vis à vis competição. Essas reformas equilibrariam essa relação, de forma a permitir a queda dos juros sem criar riscos à estabilidade do sistema financeiro nacional.

[1] Escrevi um texto técnico sobre a evolução do sistema financeiro brasileiro com Ernani Torres e Luiz Macahyba. Vale a leitura para aqueles que querem saber mais sobre como o Banco Central brasileiro estabeleceu os trade-offs entre solidez e eficiência do sistema financeiro nacional.