O sistema educacional brasileiro é melhor do que no passado, como vimos no primeiro post. Ainda assim, está muito longe de ser adequado às nossas necessidades. Ele era elitista e ruim, agora é somente ruim.
De boas intenções o inferno está cheio. Essa frase se aplica, bem demais, ao desenho atual do sistema educacional brasileiro. Vamos tomar como exemplo a louvável iniciativa do Todos pela Educação, movimento criado em 2006 e que se tornou uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) em 2014. As metas do Todos pela Educação parecem, à primeira vista, bastante razoáveis. São cinco:
Meta 1 Toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola;
Meta 2 Toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos;
Meta 3 Todo aluno com aprendizado adequado ao seu ano;
Meta 4 Todo jovem com Ensino Médio concluído até os 19 anos;
Meta 5 Investimento em Educação ampliado e bem gerido.
Não é minha intenção criticar o movimento em si, pois se o Todos pela Educação não otimiza o uso de recursos públicos para beneficiar a sociedade, muito pior seria se não existisse. Contudo, três das cinco metas são puramente quantitativas e geram incentivos perversos, uma é de difícil mensuração, e a última é incompatível com as demais. De todas, a única que realmente importa é a meta cinco. As outras ou já estamos perto de conseguir e, portanto, investimentos adicionais trazem retornos decrescentes, ou são irrelevantes no nosso estágio de desenvolvimento, como a meta quatro. É isso mesmo, buscar a universalização do Ensino Médio no Brasil, hoje, é quase jogar dinheiro fora. É uma questão de custo de oportunidade, algo muito pouco usado em políticas públicas no Brasil. Buscar a meta de universalizar o ensino médio significa, grosso modo, diminuir os recursos (financeiros e administrativos) para realizar as outras metas. A primeira consequência de seguirmos a meta de ampliar e gerir bem o investimento em educação seria abandonar, nesse momento, a meta de universalizar o ensino médio.
Aqui vai o grande argumento: chegamos ao ponto no qual investimentos marginais em universalização prejudicam a sociedade. Antes de explicar, uma digressão.
Moro grande parte do ano na China. Os últimos anos da década de 50 e início dos 60 do século passado ficaram conhecidos como a Grande Fome, consequência do Salto para Frente, sonho de Mao Zedong para impulsionar o crescimento chinês. Nessa época, secas e mau tempo levaram a uma queda da produção agrícola, mas isso foi exacerbado pelos incentivos perversos do partido comunista chinês aos governantes locais. A cada ano, o governo central determinava as metas de produção agrícola do país, segundo os parâmetros do plano quinquenal chinês vigente (o primeiro foi de 1953-57 e o segundo, não por coincidência, coincidiu com a Grande Fome). Os governantes locais eram responsáveis por ajudar a bater essas metas e ganhavam reputação junto ao governo central por sua contribuição marginal ao grande plano nacional. O resultado foi que os governantes começaram a prometer números de produção cada vez maiores, com vistas a ganhar favor com o governo central. Quando problemas climáticos levaram a uma quebra de produção, os governantes locais simplesmente estocaram quase a totalidade da produção para transferir ao governo central os números prometidos e, com isso, deixaram a míngua centenas de milhões de pessoas. Não há um número preciso sobre o número de mortes, mas estimativas vão de 15 milhões a 45 milhões de pessoas que morreram de fome no país nesse período. Sim, incentivos perversos levaram governantes de um país, em busca de ganhos políticos, a matarem de fome parte da sua população. É importante entender que é muito difícil morrer de fome. O corpo humano consegue resistir muito tempo sem consumo de calorias, desde que haja água para hidratação. Essa foi uma crise horrenda, com exemplos macabros do comportamento humano quando sujeitos a tal situação de desespero. E é exatamente isso que está acontecendo no Brasil hoje! Mas não com comida e sim com outro nutriente fundamental ao funcionamento do ser humano, que é a educação. Uma história, retirada do excelente texto sobre a China moderna de Jonathan Fenby, mostra o horror dessa época (vou deixar o texto em branco para que somente aqueles com estômago forte selecionem o texto para ler):
Uma das figuras mais chocantes da Grande Fome era a troca de crianças. Sabemos que epidemias atacam primeiro as crianças, velhos e doentes. Assim, quando a situação já estava crítica, muitas famílias viam primeiro velhos e depois crianças morrerem. O que fazer com a criança já fraca, que ia morrer? Em alguns casos, crianças eram trocadas entre famílias. O canibalismo não era prática comum, obviamente, mas em alguns casos foi o último recurso em uma situação de completo desespero.
Estamos fazendo com os prefeitos e governadores, no Brasil, o mesmo que o partido comunista, inadvertidamente, fez com os governantes locais na época do grande salto para frente (em minúsculas, mesmo): estamos matando a nova geração por inanição. Em vez de deixarmos as pessoas sem comida, as deixamos sem conhecimento. E pela mesma razão, incentivos perversos.
Como isso acontece? Grande parte do sistema brasileiro de educação é baseado nas transferências do governo federal aos governantes locais (prefeitos e governadores) através, principalmente, do Fundeb, complementado por alguns recursos locais. Em troca, os governantes locais devem ajudar o governo federal a alcançar os indicadores quantitativos de educação. Nota: estou simplificando muito o funcionamento do sistema, mas em geral é isso. Embora seja difícil acreditar, políticos respondem a incentivos, assim como qualquer ser humano. Se o incentivo for: o município vai receber mais recursos ou prestígio por atingir determinados indicadores, estejam certos de que os prefeitos e governadores vão buscar, a todo custo, atingir as metas relativas a esses indicadores. E quais são esses indicadores? Universalização, relações alunos por escola e alunos por sala de aula.
Imagine que você seja um governante, que recebe verbas federais. O número de alunos é fixo e as receitas que seu município recebe para tentar atender todos os alunos são também fixas, com alguns indicadores, como alunos por sala, que não podem ser ultrapassados. O que fazer?
- a) Diminuir o tempo de permanência do aluno no ensino?
- b) Diminuir o número de horas de uma matéria para que um professor atenda mais turmas?
- c) Aumentar o número de escolas?
- d) Todos acima.
A resposta, é claro, é todos acima. Não é por acaso que as políticas de aprovação automática, redução da carga horária de todas as matérias e aumento no número de escolas tomaram de assalto os municípios e estados no país. A política de aprovação automática, que tem pouco embasamento pedagógico, é uma técnica gerencial eficiente se o único objetivo é maximizar a função utilidade do gestor público. Afinal, aumenta o número de usuários possíveis considerando-se a mesma estrutura educacional. O mesmo é o resultado da redução do número de horas de cada matéria e aumento do número de escolas – nesse caso, aumento do número de vagas é conseguido de forma direta. Como isso aparece nos dados? Em todos os Estados brasileiros a “eficiência” do sistema em termos de provisão do número de alunos por professor e alunos por escola aumenta. Mas o pior mesmo, como podemos ver abaixo, é onde escolhemos gastar os recursos públicos da educação, que, como já vimos, é um número alto em relação aos outros países de renda média.

Primeiro, podemos ver que os investimentos em educação aumentam como proporção de todos os investimentos, de 2000 a 2014, saltando de 21% para 23%. Contudo, a maior parte do crescimento se dá no ensino médio e superior, que aumentam, em conjunto, de 7,2% do total de investimento em 2000 para 8,8% da proporção de investimento em 2014. Ou seja, 80% do aumento dos investimentos em educação foi consumido pela parte que gera menor retorno marginal para a sociedade. Ou seja, focamos, nos últimos 15 anos, no ensino médio e educação superior. Um erro grande que significa que perdemos a oportunidade de aumentar o nível educacional de toda uma geração, que não vai morrer de fome como na China, mas vai, com certeza, ter uma renda vitalícia muito abaixo do que poderia se tivesse recebido educação de qualidade. Afinal, o retorno de educação por um indivíduo é muito alta, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento, o que é o grande leitmotif da ideia de que educação é a salvação do Brasil. Infelizmente, fica pior, como veremos no próximo post.
Creio que um exemplo da perversidade dos incentivos ligados à essas metas pode ser vista no rearranjo do sistema de ensino de SP. Em que me parece que ignoraram a oportunidade de melhorar a qualidade do sistema com a redução do número de alunos para manter o sistema ruim como está, mas apenas um pouco mais barato.
Talvez você ainda vá entrar nesse aspecto mais à frente, mas até o momento sinto falta da uma análise sobre o uso de provas para medir a qualidade do sistema. O pessoal do INEP achou a divulgação das notas um completo desastre, simplesmente porque elas não deviam ser usadas para ranquear escolas e, novamente, incentivar escolas a maquiar resultados.
E claro não podemos esquecer o aspecto eleitoreiro, investir em universidade e ensino médio é algo de curto prazo que chama a atenção dos eleitores. Educação infantil provavelmente não renderia um impacto de curto prazo tão visível. No mais espero curioso pelo resto da série.
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Não sei porque não respondi seu comentário na época do post (eu culpo o fuso horário chinês). De qualquer forma, não entrei na parte pedagógica e nos incentivos perversos de provas para medir resultados do sistema. Não fiz isso porque na minha proposta, estaria olhando primeiramente a educação infantil, e as medidas de sucesso são bem mais práticas, no longo prazo. Ou seja, mede-se o resultado das intervenções educacionais por questões como: salário médio; incidência de pessoas que vão presas e reincidência; etc. Medir resultados via provas serviria, num mundo ideal, para medir evolução de curto prazo. Não é o caso das ideias principais da série, mas com certeza seria importante discutir isso no caso da medição da evolução de programas específicos que fossem desenhados para educação infantil.
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Entendi o seu ponto, realmente seria uma questão de foco. É que acredito que as provas parecem criar um problema entre os gestores, no Brasil e no mundo, de se tornarem um fim em si mesmo. Dias atrás li um artigo interessante sobre a correlação entre notas do GPA americano e orientação para a inovação entre estudantes americanos. E os resultados não são animadores. https://www.psychologytoday.com/blog/freedom-learn/201604/inverse-relationship-between-gpa-and-innovative-orientation
No mais, isso só reforça aquela idéia que você colocou que precisamos seriamente de mais P&D aplicada à educação no Brasil. Algo como o que a Embrapa e os institutos de pesquisa estaduais fizeram com a agricultura brasileira nos anos 70. Uma “revolução verde” na educação, sem os danos ambientais, claro.
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