O post de hoje é sobre como o sistema de ensino superior do Brasil é desenhado de forma errada, desperdiçando uma montanha de recursos públicos. Já vimos anteriormente que: 1) buscamos metas quase sempre quantitativas e 2) o investimento em educação superior é o menos eficiente em termos de retorno para a sociedade e, no Brasil, foi um dos principais motores dos gastos com investimentos em educação nos últimos 15 anos.
Em relação ao ponto 1, no Brasil estamos aumentando a estrutura, em termos de escolas e professores, em todos os níveis de ensino. A reforma dos fundos de educação trouxe muito mais recursos para Estados e Municípios, que os gastaram melhorando os indicadores quantitativos. A tabela abaixo resume uma grande quantidade de informações, mas no geral, mostra como a relação alunos/professores caiu muito nos últimos anos, em todas as regiões do país. Ótimo para metas quantitativas, mas o resultado disso ainda é bastante baixo, embora não sejamos especialista em medir os resultados de nossas intervenções em educação.

Mas o post de hoje é sobre o post 2, e como montamos um sistema de ensino superior particularmente ruim. Nosso sistema de ensino superior público (e privado) é ineficiente, isolacionista, elitista e inconsequente, e mesmo louváveis políticas como a de cotas raciais e o FIES não vão conseguir mudar muito isso.
Primeiro, o centro da questão. Qual o papel da Universidade Pública?
Existem três tipos de modelos de ensino superior, o de provisão pública universal (como na Dinamarca) e o de provisão mista, como na maior parte do mundo (Brasil, Canadá, Austrália, China, Europa etc). O modelo norte-americano, pra variar, é cheio de peculiaridades.
Em muitos poucos países do mundo o sistema de ensino superior é universal. Na Dinamarca, país de cerca de 5,5 milhões de pessoas, todos tem direito ao ensino superior, recebendo inclusive uma bolsa mensal de cerca de 700 euros para termos um curso em cerca de 5 anos. Mas o Brasil (e quase todo o resto do mundo) está longe de ser ou pretender ser a Dinamarca. Adendo: para um economista como eu, que chegou para dar um curso de verão na Dinamarca e encontrou um diretor orgulhoso de que todos os dinamarqueses recebiam uma bolsa para estudar, é fácil ver como o sistema deles é recheado de ineficiências também. Os dinamarqueses estão fazendo várias mudanças para tentar acabar com essas ineficiências, mas a história aqui é sobre o Brasil.
O maior erro feito na análise das universidades públicas em um sistema de provisão misto não universal é achar que o ensino é peça fundamental para o desenho do modelo de universidade pública como o brasileiro. Não é. O papel da universidade pública é gerar conhecimento e ensino nas áreas que não poderiam ser ocupadas de forma eficiente pelo setor privado. Simplesmente não é papel do setor público formar advogados e administradores, para ficar em dois exemplos, que devem absorver habilidades específicas para o mercado de trabalho privado, e sim somente estabelecer cursos nessas duas disciplinas que sejam voltados à pesquisa de ponta. A universidade pública, no modelo brasileiro, deveria sim selecionar entrantes e oferecer limitado número de vagas em cursos de excelência. A vaga em universidade pública não é direito de ninguém e cabe ao Estado definir as melhores formas de acesso, incluindo-se aí cotas raciais e sociais, se for o caso. Ou seja, se a sua chance de entrar na faculdade pública diminui por causa das cotas, paciência. Você não tem direito a essa vaga. E, mais ainda, não existe faculdade gratuita. A universidade pública transfere renda de toda sociedade, incluindo os mais pobres, para uma elite que consegue entrar em uma universidade pública “sem pagar”.
No modelo brasileiro, deveria haver uma separação clara entre os papéis do setor público e privado, com um desenho que maximizasse o uso dos recursos públicos e desse aos outros pretendentes ao ensino superior a oportunidade de conseguir diplomas de qualidade em instituições privadas. Obviamente, no Brasil tudo acaba em zona (quem dera fosse em pizza).
O que vimos nos últimos anos é uma mistura irresponsável em uma busca desenfreada pelo aumento do número de vagas: criamos dezenas de novas universidades públicas e, ao mesmo tempo, aumentamos significativamente os subsídios a quem quer entrar no sistema de ensino superior, através do FIES. Em ambos os casos, o tiro ou saiu ou vai sair pela culatra. No caso das novas IFES (instituições federais de ensino superior) o aumento dos gastos de custeio contribui para o déficit público e, no caso do FIES, por ter sido feito com poucos critérios, acabou ficando muito caro, em dezenas de bilhões de reais, embora tenha favorecido, em 2015, quase dois milhões de estudantes. O FIES é uma excelente ideia, a de subsidiar os estudos de quem não pode pagar naquele momento, mas que deveriam retornar os valores com o aumento de renda futuro. Contudo, o sistema é cheio de buracos, da pouca exigência para obtenção dos recursos ao tamanho do subsídio – a taxa de juros é de 3,4% ao ano, muito abaixo da inflação e um custo irresponsável para os cofres públicos. O ideal seria um prazo de carência razoável mas com taxas de juros reais de 0% ou perto disso, o que significaria algo em torno de 6,5% nominais nos últimos anos. Isso significaria que ainda assim valeria a pena para os estudantes buscarem diplomas que resultassem em aumento de renda, mas tiraria um grande ônus dos cofres públicos. Não há razão para essa transferência de renda, já que a ideia é que o ensino superior vá aumentar a renda dos tomadores de empréstimo. Os gastos brutos com o programa encontram-se abaixo, e são um sintoma da farra com dinheiro público. Se bem desenhado, o FIES significaria oportunidade para milhões de estudantes, a um custo relativamente baixo para o governo. Com o tamanho do subsídio e o próprio incentivo das universidades privadas a que alunos que já estavam pagando mensalidades entrassem no programa, multiplicamos os custos sociais de uma maneira irresponsável. O FIES tinha tudo para ser um excelente programa, mas virou uma forma irresponsável de jogar dinheiro público fora.

Em 2016, o MEC planeja gastar R$18,7 bilhões, mas somente teremos 250.279 novos contratos. Esses em tese são empréstimos e não gastos públicos diretos, mas mesmo que todos sejam pagos, o que é impossível, o setor público ainda estaria gastando alguns bilhões por ano em subsídios. Sim, estamos gastando bilhões de reais para beneficiar somente 1-2 milhões de pessoas. Esses gastos serão os mesmos por um tempo mesmo que não entre mais ninguém nos próximos anos. Chegamos ao absurdo de ter quase um Bolsa Família no orçamento, mas com capacidade adicional de atender somente 250 mil pessoas. Poderíamos ter multiplicado esse número com um desenho melhor do programa, que tinha tudo para ser excelente (já repeti isso três vezes nesse post, mas é simplesmente porque é surreal para um economista ver como boas intenções podem ser destrutivas a esse ponto). Mas se o FIES representa um rio de dinheiro para pouco retorno para a sociedade, o caso das Universidades Públicas é ainda pior.
Sabemos que as universidades e outras instituições de ensino superior no país são muito ruins, com algumas raras exceções (o IMPA, por exemplo). Claro que há bons cursos em algumas universidades, mas simplesmente não temos, no país, nenhuma universidade, pública ou privada, entre as 100 melhores do mundo. A USP, no ranking da Top Universities, para ficar em somente um exemplo, aparece como melhor brasileira, em um modesto 143º lugar. E o que fizemos nos últimos anos? Simplesmente mais do que duplicamos o número de universidades públicas.
Uma universidade pública é algo especial. Por um lado, emprega centenas de pessoas e é capaz de gerar e multiplicar conhecimento, seja através de pesquisa ou ensino. Por outro, representa um compromisso perpétuo de gastos públicos com custeio direto e, no futuro, com aposentadorias. Não há decisão mais importante, para o gestor público, do que a criação de gastos permanentes. Deveria ser uma decisão a ser tomada em última instância, através de um plano de longo prazo que medisse custos e benefícios. Em vez disso, saltamos de 52 IFES em 2001 para 109 hoje. Mais do que dobramos o número de instituições federais de ensino, em todas as regiões do Brasil, sem garantir que as anteriores gerassem retornos maiores à sociedade. Pior do que isso, incentivamos as novas e antigas instituições a criarem mais vagas, em grande parte em substituição à vagas existentes em universidades privadas. Criamos dois subsídios, o de vagas “gratuitas” e o FIES, ambos competindo entre si. Um desperdício gigantesco de dinheiro, ainda mais considerando-se que o aluno de ensino superior é o que custa mais caro à sociedade. O gráfico abaixo mostra essa disparidade – cada aluno no ensino superior custa à sociedade quatro vezes mais do que nas outras modalidades de ensino.

Em vez de adensarmos as universidades públicas que tínhamos, melhorando sua qualidade e seu retorno para a sociedade, criamos uma maior oferta de cursos à um custo financeiro imenso. De 2000 a 2015, o investimento em ensino superior aumentou de 0,9% para 1,2% do PIB. Isso significa gastos adicionais de R$17,7 bilhões por ano, a valores de 2015. Estamos gastando muito mais do que no passado e, ainda assim, por qualquer medida de eficiência, não estamos melhorando. Não temos nenhuma universidade entre as 100 melhores e a maioria das vagas abertas pelo setor público estão desassociadas das funções de P&D das faculdades. Um bom exemplo é a UFF, que criou um campus em Macaé que oferece somente três cursos de graduação: Administração, Ciências Contábeis e Direito. Esse é realmente o papel da universidade pública? Oferecer cursos que são substitutos aos do mercado e virar um escolão? A qualidade da universidade pública não pode estar associada ao número de alunos atendidos. Expandimos o acesso público ao ensino superior sem um bom planejamento e estamos pagando R$17,7 bilhões por ano por isso, valor que só tende a aumentar, mesmo se não abrirmos mais nenhuma IFES. Vai ser difícil diminuir esses gastos sem um redesenho do papel da universidade pública no Brasil. E ainda nem entrei no caso do Ciências sem Fronteiras, uma bolsa para que a classe média (em sua maioria) pudesse se divertir no exterior (com exceções é claro). No final da série de posts vou propor um desenho diferente, que maximiza o retorno para a sociedade, e que envolve acertar os incentivos para gestores, professores e alunos, que hoje estão extremamente desalinhados.
Achei esse texto mal escrito. Muita opiniao e poucos fatos. Como assim ensino superior não é um direito ? Por que ser contra a construçao de universidades ? É gigantesco o gap salarial entre gente que tem o ensino medio e gente que tem o ensino superior. Se queremos acabar com a pobreza precisamos sim universalizar o acesso ao ensino superior. E nao temos vagas suficientes para isso. E o que faremos então ? Vamos deixar a grande massa só com o ensino medio, enquanto gente privilegiada tem o ensino superior e perpetua a desigualdade social ?
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Você leu os outros textos? Toda a construção do argumento vai muito além desse post. Ser contra a criação de universidades não é ser contra a criação de vagas. Devemos criar vagas, mas R$18 bilhões para algo entre 1-2 milhões de pessoas é um absurdo, assim como a criação de escolões, novas IFES, que são completamente inúteis. Jogamos dinheiro fora e vamos deixar as pessoas exatamente como você falo: somente com o ensino médio ou com um diploma inútil. Leia as postagens anteriores e você vai entender o desenrolar do argumento. Não sou contra o FIES, mas sim como foi operacionalizado.
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Os outros textos são ótimos, eu já os havia lido. Reli seu texto e o que entendi foi que sua proposta é que o Estado feche os cursos que teriam demanda pelo setor privado, como “medicina”, “direito”, “administração” e se dedicasse a cursos de baixa lucratividade como “pedagogia”, “fisica”, “oceanografia”, que tem baixa procura. E para que os alunos pobres possam ter acesso, voce propõe uma ampliação do FIES a juros altos, para evitar rombos no orçamento estatal. Acho valido, mas seria um escandalo se a USP fechasse seu curso de medicina ou Direito por exemplo. Alem disso a Universidade publica tem muito mais prestigio que a privada. É o sonho de todos, por isso aumentar vagas publicas tem força politica e financiamento não. Isso só vai mudar quando os profissionais de RH pararem de idolatrar as universidades publicas, o que acho dificil. Voce não comentou o Prouni, tem algo a dizer sobre o programa ?
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Não! Medicina e Direito na USP nunca deveriam ser fechados. Precisamos de alguns cursos de excelência em TODAS as áreas! Isso só quer dizer que não devemos ter universidades públicas abrindo cursos de direito a torto e a direito, mas alguns que sejam de excelência, com áreas de pesquisa reconhecidas, tem que ser inclusive valorizados. Com Medicina isso ainda é mais crítico, porque pesquisas na área geram diversas externalidades positivas, muito mais do que em Direito. Não é fechar cursos e sim racionalizar a separação entre pesquisa e ensino. O sonho da universidade pública já está mudando em algumas áreas, como administração e economia. E isso é muito bom! Gera competição (EAESP, EBAPE, EPGE, INSPER, PUC, etc) e tira do erário a necessidade de fazer pesados investimentos nessas áreas, complementando-as com pesquisa pública (UNICAMP e USP, por exemplo, são excelentes exemplos de linhas de pesquisa que nunca interessariam à iniciativa privada). Precisamos mudar nosso modelo e tirar do Estado todo o ônus. Afinal, como vou escrever no próximo post, muitos dos retornos de educação de ensino superior são privados, enquanto no caso do ensino fundamental há também muitos retornos públicos. Espero ter lhe esclarecido.
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Sobre o FIES eu concordo com vc. Talvez a carência tenha que ser mais longa, mas o desenho do sistema ficou ineficiente. Meus irmãos moram nos EUA e comentam como é bem mais fácil fazer uma 2a ou 3a faculdade l=a para mudar de profissão ou se aprimorar. É comum encontramos alunos universitários na faixa dos 40-50 anos, ou, pelo menos mais comum que aqui. Crédito educativo fora do FIES tem juros muito altos no Brasil o que tb distorceu o sistema.
Sobre universidade pública eu concordo em parte. Elas deveriam ter um aspecto de pesquisa muito maior e ser mais eficazes. Ocorre que muitos pesquisador se tornam professores quando não o querem e muitos professores da rede privada, como eu, sonham em se tornar da rede pública porque as condições de trabalho são muito melhores. Houve até reclamações de um gestor de rede privada de faculdades reclamando que os salários das IFES tinham que baixar porque ele estava tendo dificuldades em reter seus melhores professores diante dos salários irreais das IFES.
Gostei do seu texto, mas é o que tem mais forte viés ideológico “A vaga em escola pública não é direito de ninguém”. Você afirma nos textos anteriores que é vital garantir creches, educação infantil e educação fundamental de qualidade para termos cidadãos mais produtivos e críticos. Atender essa demanda ou não pela educação pública, tendo como alternativa subsídios para a rede privada, é viés ideológico para mim.
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Vou mudar no texto. Concordo com parte da sua critica. O certo eh universidade publica nao eh direito de ninguem. Realmente o uso da expressao escola conteria um vies ideologico. Em nenhum pais do mundo o Estado garante a universalidade do ensino superior. Mesmo nos Escandinavos ha criterios de entrada, baixos mas ha. (desculpe o texto sem acentos).
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